O conhecido jargão “a regra é clara!”, de Arnaldo Cesar Coelho, é por ele normalmente proferido após dar sua opinião sobre um lance duvidoso, na sua qualidade de ex-árbitro. Por vezes, Galvão Bueno ironiza Arnaldo justamente por haver tantas divergências interpretativas entre os árbitros de futebol sobre o mesmíssimo lance. Assim, cabe indagar: a regra é realmente clara?!
Claro que a pergunta é uma brincadeira. Mesmo sendo a regra clara, o lance pode ser duvidoso – por isso que o Superior Tribunal de Justiça Desportiva apenas anula partidas de futebol em casos de erros de Direito e não de erros de fato. Assim, não se analisarão todas as regras do futebol nesta postagem, mas apenas uma, relativamente à (des)necessidade de intenção propriamente dita para que a mão-na-bola configura falta ou penalidade máxima (pênalti).
O motivo dessa elucubração decorre de uma mudança dos comentaristas de arbitragem nos últimos anos sobre o tema. Lembro-me que, no final da década de 1990, costumavam ditos comentaristas que não era necessária uma intenção estrita de se colocar a mão na bola para a configuração da falta/penalidade máxima. Dizia-se com certa unanimidade que a imprudência do jogador bastava para configurar a penalidade (as discussões sempre se davam em lances de pênaltis, marcados ou não).
Contudo, nos últimos anos (não sei ao certo, talvez de 2005 ou 2007 em diante), os comentaristas de arbitragem têm afirmado que seria necessária a intenção clara e deliberada do jogador de colocar a mão na bola para a configuração da penalidade, o que entra em contradição com a colocação de que a imprudência a caracterizaria.
Quanto ao tema, a regra 12 estabelece que “será concedido um tiro livre direto para a equipe adversária se um jogador cometer uma das seguintes três infrações (…) tocar na bola com as mãos intencionalmente” (grifo e destaque nossos).
Pois bem: como sabe qualquer estudante de Direito, o ato doloso (intencional) não se limita apenas ao dolo direto, ou seja, à vontade direta e deliberada de cometer determinado ato ou se omitir a fazê-lo. O ato doloso também pode se caracterizar pelo dolo eventual, que é comumente explicado (para fins didáticos) como aquele ato o qual o agente não deseja produzir por sua conduta, mas sabia que era possível de acontecer e não se importava se ele se realizasse. Diferencia-se o dolo eventual da culpa em sentido estrito, ou seja, do ato cometido em negligência (deixar de fazer o que deveria), imprudência (fazer o que não deveria) ou imperícia (imprudência de profissionais, em sua área de labor), pois nestes últimos o agente, além de não desejar, não se mostrava indiferente ao ato produzido. Uma linha ainda mais tênue separa o dolo eventual da culpa consciente, pois nesta o agente não queria produzir o ato, mas, sabedor da possibilidade de sua ocorrência, confiava excessivamente em sua perícia para evitá-lo (portanto, sem ter êxito).
Essas considerações são importantes para fins de interpretação da regra em questão. Com efeito, nela se fala que será marcada a penalidade máxima quando o agente intencionalmente colocar a mão na bola. Daí, o senso comum tem concluído que seria necessária a mencionada vontade clara e deliberada (ou seja, o dolo direto) para tanto, na expressão de Renato Marcília, outro comentarista da Rede Globo e do SporTV.
Contudo, é plenamente possível interpretar-se a regra como admitindo a marcação da penalidade em casos de dolo eventual, na medida em que, neste caso, apesar do agente não desejar colocar a mão na bola, claramente não se importava se este resultado ocorresse.
Cabe aqui reiterar a diferença do dolo eventual para a culpa em sentido estrito, especificamente a imprudência supra mencionada, tendo em vista que, como dito, era comum dizer-se que a imprudência poderia caracterizar a marcação da penalidade. Quanto ao tema, vale dizer que claramente a interpretação anterior da regra, que falava em imprudência, não usava o sentido técnico do termo, no sentido do ato juridicamente culposo da modalidade imprudência. Entendimento em sentido contrário desvirtuará o significado jurídico do termo.
Ou seja, parece fazer parte do espírito da norma, ou seja, da ratio legis que o dolo eventual também seja apto a configurar o tiro livre direto, dentro ou fora da área. Nem se fale que a interpretação teleológica (finalística) não poderia ser utilizada na interpretação das regras de futebol, na medida em que a própria Comissão de Arbitragem da Confederação Brasileira de Futebol (CA/CBF) afirma, no início do livro de regras, que “Arbitrar bem é sentir o jogo para possibilitar seu desenvolvimento natural, somente interferindo para cumprimento das regras e, especialmente, de seu espírito” (grifo e destaque nossos). Como a interpretação teleológica (finalística) visa buscar o espírito do enunciado normativo, ela se figura adequada para a finalidade aqui pretendida.
Assim, considerando que a regra não é tão clara quanto parece a olhos leigos (!), conclui-se que o dolo eventual é plenamente apto a caracterizar a penalidade máxima (ou faltas cometidas fora da grande área), por se enquadrar na expressão ato intencional constante da regra 12.