Criminalização da Homofobia e da Transfobia – Carta Aberta ao Congresso Nacional e à Presidenta da República

Carta Aberta às Deputadas/Deputados Federais, às Senadoras/Senadores e à Presidenta da República
(enviada por e-mails institucionais às/aos primeiras/os e formulário eletrônico à segunda)

Criminalização da Homofobia e da Transfobia Sem Hierarquização de Opressões
Por Paulo Roberto Iotti Vecchiatti

Excelentíssimas Deputadas/Senadoras, Excelentíssimos Deputados/Senadores e Excelentíssima Presidenta.

A audiência pública de 03.12.2014 realizada na Câmara dos Deputados tratou de tema extremamente importante e urgente. A discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero, ou seja, a discriminação contra pessoas LGBT é lamentavelmente uma realidade que assola nossa sociedade. Vivemos atualmente em uma verdadeira banalidade do mal homofóbico e transfóbico, na medida em que muitas pessoas (“normais”, não “monstros”) se vêm detentoras de um pseudo “direito” de ofender, discriminar, agredir e até mesmo matar pessoas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) por sua mera orientação sexual ou identidade de gênero não heterossexual cisgênera, ou seja, todo aquele que não ame pessoas do sexo oposto e que não se identifique com o gênero socialmente atribuído ao seu sexo biológico. Os dados recolhidos pelo “Disque 100 LGBT”, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, corroboram isso, visto que ratificaram as célebres denúncias do Grupo Gay da Bahia – GGB, pelo qual a cada dia uma pessoa LGBT é morta no Brasil por homofobia ou transfobia (ao passado que os dados do “Disque 100 LGBT” mostram diversas outras formas de intolerância contra referida população). Três casos paradigmáticos bem expressam isso. A famosa “lampadada” que um jovem gay recebeu, na Avenida Paulista, em São Paulo, por pura homofobia de seu agressor; o caso de um pai e um filho que foram espancados por estarem abraçados, por terem sido confundidos com um casal homoafetivo (o pai perdeu parte da orelha), em 2011; e o caso de dois irmãos gêmeos, também espancados, também por estarem abraçados e também por terem sido confundidos com um casal homoafetivo (um deles morreu em razão das agressões), em 2012. Esses casos mostram bem a citada banalidade do mal homofóbico e transfóbico supra denunciada, sendo que os dois últimos mostram heterossexuais sendo vítima de homofobia por estarem abraçados, como se dois homens não pudessem exprimir qualquer afeto, mesmo fraterno, entre si sem serem considerados “viados” (SIC) e, assim, intoleráveis… sem falar na recente agressão a um casal gay no metrô de São Paulo, já no final de 2014, apenas por se comportarem como namorados, da mesma forma que se aceita ou ao menos tolera entre casais heteroafetivos…

Não se quer nenhum “privilégio”, quer-se igual proteção penal. A atual Lei de Racismo (Lei 7716/89) protege negros(as)/brancos(as), religiosos(as), grupos étnicos e estrangeiros-as/migrantes regionais ao criminalizar a discriminação por cor, etnia, procedência nacional e religião. O que queremos é que essa proteção se estenda a pessoas LGBT (e heterossexuais cisgêneros), pela inclusão das expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero” na Lei de Racismo, nossa Lei Geral Antidiscriminatória, como bem diz o juiz federal Roger Raupp Rios, maior autoridade brasileira no tema do Direito Antidiscriminatório.

 

Veja-se (para usar o notório projeto em trâmite no Senado sobre o tema), nunca o PLC 122/06 visou criminalizar “só” a “homofobia” [e a transfobia], ele visa[va] a criminalizar a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero, logo, se a tal “heterofobia”, da qual nunca tivemos notícia, vier a existir, ela seria criminalizada pelo projeto. “Orientação sexual” é expressão que notoriamente abarca homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade; “identidade de gênero” é expressão que notoriamente abarca travestilidade, transexualidade e cisgeneridade – cisgênera é a pessoa que se identifica com o gênero socialmente atribuído ao seu sexo biológico, ao seu corpo. São expressões mundialmente consagradas para tais fins, e inclusive positivadas inclusive em algumas Constituições Estaduais e Leis Estaduais e Municipais brasileiras, sendo pura ignorância ou má-fé argumentativa dizer, como dito no apensamento do PLC 122 ao Projeto de Novo Código Penal, que seriam termos imprecisos (parafraseamos), para o absurdo de retirar as menções a “orientação sexual” e “identidade de gênero” dele (Projeto de Novo Código Penal) – isso é importante ser destacado: com essa retirada, os fundamentalistas religiosos que se opõem à criminalização da homofobia e da transfobia tiraram tal criminalização do Projeto de Novo Código Penal, que por ora não a abarca, não obstante o PLC 122/06 esteja a ele formalmente apensado (e, assim, na prática, enterrado…).

Aliás, nunca houve a palavra “homofobia” [e transfobia] no PLC 122/06, o que mostra que muitos críticos do projeto sequer o leram ou, se o leram, agiram com má-fé argumentativa. Fala-se em geral em criminalização “da homofobia [e da transfobia]” para fins didáticos, porque evidentemente essa é a população que precisa de proteção em termos de gênero e sexualidade, já que heterossexuais cisgêneros(as) não são discriminados(as) por sua orientação sexual ou identidade de gênero como são pessoas LGBT. Mas, como visto, nunca se pediu para criminalizar “apenas” a homofobia e a transfobia, mas a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero em geral, o que protege também pessoas heterossexuais cisgêneras (ao contrário de projeto de lei que absurdamente tramita na Câmara, que visa criminalizar, aí sim, apenas a tal “heterofobia”, que nunca existiu, ao menos enquanto fenômeno disseminado, ao contrário da homofobia e da transfobia). Não entendam mal, seria absolutamente constitucional proteger criminalmente “apenas” pessoas LGBT em termos de opressão à sexualidade e ao gênero (autoatribuído e vivido), da mesma forma que foi constitucional coibir-se com mais rigor a violência doméstica “apenas” quando cometida contra a mulher pela Lei Maria da Penha, já que é o grupo vulnerável que precisa de proteção, não o grupo dominante; mas o PLC 122/06 teve a sensibilidade de usar termos que protegem inclusive heterossexuais cisgêneros(as).

Há quem argumente que “raça é condição, homossexualidade é comportamento” (SIC) para com isso tentar “justificar” a não-criminalização da homofobia e da transfobia, mas ora, essa afirmação é simplesmente absurda na ideia que professa. Dá a entender que o racismo só é criminalizado pela “raça” ser algo independente de “opção” da pessoa, o que é uma visão muito conservadora, que não respeita as liberdades individuais, além de incoerente com a atual Lei de Racismo. Ela é conservadora porque a liberdade garante às pessoas o direito de fazerem o que quiserem desde que não prejudiquem terceiros, e a pessoa ser homossexual, bissexual, travesti, transexual (LGBT) não traz prejuízo a ninguém, não se podendo classificar a comunidade LGBT por estereótipos preconceituosos. Logo, se orientação sexual e identidade de gênero decorressem de “opções” das pessoas (e sabemos que não decorre, já que ninguém “escolhe” ser homossexual, heterossexual, bissexual, travesti ou transexual, simplesmente se descobrindo de uma forma ou de outra), seriam “opções” absolutamente válidas de serem vividas, merecedores de respeito e, assim, de proteção do Estado contra opressões a elas intolerantes. É, ainda (essa “tese” de não-criminalização “porque” “raça é condição, homossexualidade é comportamento”/SIC), incoerente porque a atual Lei de Racismo criminaliza a discriminação religiosa, sendo a “religião” dependente pura e simplesmente da “opção” da pessoa, de um ato de vontade dela em aderir a esta ou aquela crença metafísica, donde é contraditório usar aquele argumento contra a criminalização da homofobia e da transfobia dada a criminalização da discriminação religiosa. Logo, fica claro que os fundamentalistas religiosos que se opõem à criminalização da homofobia e da transfobia são aqueles que querem ter privilégios, já que não querem que a proteção que o Estado dá a eles seja estendida às pessoas LGBT…

“equiparação ao racismo” é a medida legislativa correta e necessária para a criminalização da homofobia e da transfobia. A uma porque homofobia e transfobia são espécies do gênero racismo, no conceito de racismo social consagrado pelo Supremo Tribunal Federal. No início dos anos 2000, o STF julgou o HC 82.424/RS, no qual considerou constitucional a lei considerar o antissemitismo (discriminação contra judeus) como espécie do gênero racismo – alegou-se no processo que a Constituição “teria pretendido” considerar como racismo apenas a negrofobia, não podendo a lei considerar outras hipóteses como racismo, argumentação esta rejeitada pelo STF. Afirmou o STF que, como o “Projeto Genoma” acabou com a crença antes difundida de que a humanidade seria formada por “raças humanas biologicamente distintas entre si” (SIC), demonstrando ser a raça humana biologicamente una, para que o racismo não virasse “crime impossível” pela unicidade biológica da humanidade, adotou-se o conceito de racismo social, pautado em forte literatura citada no julgamento, que se caracteriza, em síntese, por qualquer ideologia (e, portanto, conduta) que pregue a inferioridade de um grupo social relativamente a outro – por isso considerou-se o antissemitismo espécie do gênero racismo, e nesse conceito de racismo social enquadram-se a homofobia e a transfobia. Afinal, a homofobia decorre do heterossexismo e a transfobia do cissexismo, ideologias que pregam, respectivamente, que a heterossexualidade seria a única sexualidade “digna”/“válida” de ser vivida e que a autoidentificação com o gênero socialmente atribuído ao seu corpo, ao seu sexo biológico, seria a única identidade de gênero “aceitável” (“digna”, “válida” etc) na vida em sociedade. Logo, são ideologias ontologicamente racistas (daí usarem-se aspas para falar em “equiparação ao racismo”, já que elas já são espécies do gênero racismo, enquanto racismo social), de sorte que homofobia e transfobia são espécies do gênero racismo. Mas, como o Direito Penal exige lei expressa (atividade legislativa) para criminalização de condutas (pode-se absolver por analogia, mas não se condenar/criminalizar por analogia), então esse reconhecimento legislativo expresso é indispensável, a despeito do quanto se acaba de falar.

A outra, a “equiparação ao racismo” é necessária também para que não haja hierarquização de opressões. Ora, se discriminar um negro ou religioso puder “dar cadeia” e discriminar um LGBT não puder, gerando mera pena não-criminal, pena não-privativa de liberdade ou, em suma, pena inferior à das outras opressões criminalizadas na Lei de Racismo, estar-se-á passando a mensagem de que a opressão negrofóbica, religiosofóbica, etnofóbica e xenofóbica seriam “mais graves” que as opressões homofóbicas e transfóbicas, o que é absurdo e inaceitável, dado que, embora com peculiaridades, todas são opressões históricas contra grupos vulneráveis. Embora haja quem diga que o racismo seria “diferente” da homofobia [e da transfobia] por ele ser/ter sido um “sistema social segregacionista”, homofobia e transfobia, enquanto espécies do heterossexismo e do cissexismo, também se caracterizam enquanto sistemas sociais segregacionistas. Pode-se não se ter chegado a escravizar pessoas LGBT por sua mera orientação sexual ou identidade de gênero, mas as Ordenações do Reino Português, que só deixaram de viger no Brasil definitivamente após o Código Civil de 1916, consideravam a sexualidade homoafetiva como equivalente ao “crime de lesa-majestade” (!), determinando a morte na fogueira aos condenados por “crime de sodomia” (sexo homoafetivo), o que mostra que tratam-se de sistemas de opressão (negrofóbico e homotransfóbico) absolutamente análogos a merecerem, assim, a mesma punição penal.

A fala de que o “Código Penal [seria] suficiente” é simplista e absurda. Significa dizer que a Lei de Racismo seria “desnecessária” e que poderia ser pura e simplesmente revogada (o que seria inconstitucional), já que o Código Penal seria “suficiente”. Ora, crimes de ódio precisam se punição específica e condizente com a gravidade de tal conduta, de oprimir alguém por uma mera característica pessoal sua (para simplificar, por ódio ao grupo social do qual aquela pessoa faz parte), o que demanda por lei específica. Daí a pertinência da “equiparação ao racismo”: punir homofobia e transfobia da mesma forma que se pune as opressões contra outros grupos sociais. Igual proteção penal, pura e simplesmente: quem defende o contrário é que quer “privilégios”, não a pessoas LGBT, mas aos outros grupos sociais já protegidos pela atual Lei de Racismo…

Sobre o tema, alguns muito falam em suposta “inefetividade da Lei de Racismo”, como se ela não tivesse sido importante ou, ao menos, não tivesse obtido resultados práticos no combate ao racismo, o que é puro e simples absurdo. Ora, a Lei de Racismo calou os racistas; não ouvimos mais hoje discursos de ódio, incitações ao preconceito e à discriminação por cor de pele e mesmo “piadinhas” (SIC) negrofóbicas como ouvíamos no passado, como eu ouvia na minha infância, na década de 1980, por exemplo. Isso, por si, mostra a importância e a efetividade dela. No mais, cabe lembrar que os Tribunais Brasileiros tiveram grande responsabilidade na aplicabilidade tímida da Lei de Racismo, ante a invenção jurisprudencial (absurda) da diferença entre “racismo”, enquanto ofensa a uma coletividade de pessoas, e “injúria racial”, enquanto ofensa a uma única pessoa por elementos raciais – assim, como a Lei 7716/89 punia “apenas” (SIC) o “racismo”, todo negro que denunciava alguém por racismo por ter sido ofendido em razão de sua cor de pele ouvia do Judiciário que isso não seria “racismo”, mas mera “injúria racial”, com juízes desclassificando o crime para a “injúria [simples]”, cuja pena é ínfima, ou, pior, (ouvi dizer que houve quem dissesse) que o fato seria “atípico”, logo, não criminoso. Só em 1997 o Congresso Nacional criminalizou a tal “injúria racial”, como “injúria qualificada” no Código Penal, para contornar esse problema, e no final dos anos 1990 a Lei de Racismo já tinha contribuído para consolidar na sociedade o racismo como conduta intolerável. Evidentemente ainda há muitas pessoas racistas, nesse racismo enrustido notoriamente existente no Brasil (que de “cordial” não tem nada), mas ele não é mais socialmente externalizado como algo “normal” e pessoas racistas sabem que serão punidas se praticarem atos considerados racistas. Logo, a Lei de Racismo funcionou sim senhor(a), não obstante seus críticos ignorem solenemente essas considerações – já falei isso a alguns críticos atuais, e eles simplesmente deixam de se manifestar sobre esses relevantes pontos, mostrando assim que não têm como refutá-los… claro que têm todo o direito de criticar a lei, mas dizer que discorda sem refutar o argumento mostra, a meu ver, que a pessoa não sabe como refutar embora mantenha sua opinião… o que mostra, dada a disseminação dessa postura em debates em geral, que o debate é realmente outro lamentável mal entendido nesse país…

Ainda, cabe esclarecer que, como militantes de direitos humanos em geral, ao menos os de viés de esquerda, sabemos dos notórios problemas do “Estado Penal” e com eles nos sensibilizamos. Somos favoráveis a uma ideologia de “Estado Penal Mínimo”, mas uma ideologia coerente e não aleatória. Se este Congresso Nacional se dispuser a reformar todo o sistema penal brasileiro, terá nosso total apoio para a implantação de um sistema penal “não-punitivista”, que tenha como regra a “Justiça Restaurativa” e as penas alternativas para crimes sem violência física e que não se pautem em discursos de ódio. Contudo, o que é inaceitável é defender-se um “Estado Penal Mínimo” somente para a criminalização da homofobia e da transfobia, como se vê em determinados discursos, que invocam o “Estado Penal Mínimo” apenas no contexto desta criminalização. Ora, como visto, gera uma intolerável hierarquização de opressões permitir-se a punição de discriminações contra negros e religiosos com cadeia e impor-se que a punição de discriminação contra pessoas LGBT só poderia ser punida com “penas alternativas”. Se a ideia é propor um paternalismo estatal, determinando penas que a sociedade punitivista não aceita, então que se o faça para toda a sociedade, não apenas para os crimes contra pessoas LGBT. Que se compre uma tal “briga” (mudança da mentalidade do sistema penal) com toda a sociedade (que é notoriamente “punitivista” e deseja penas de prisão a todos os crimes – o notório desejo de aumento de penas notório na sociedade prova isso) e todos os grupos sociais protegidos pela Lei de Racismo (como negros e judeus), não apenas contra o grupo social mais fragilizado da atualidade (ou, ao menos, um dos mais fragilizados), a saber, o LGBT…

Aliás, vale lembrar, que o sistema penal brasileiro já admite a chamada “Justiça Restaurativa” (penas alternativas), tendo como critério o tamanho da pena. Uma sentença que condene alguém a até quatro anos de prisão pode ser substituída por “penas alternativas”, como serviços comunitários, multas etc, mas o juiz pode, considerada “a gravidade do caso”, ante os antecedentes, a culpabilidade do condenado, sua conduta social e outros elementos, aplicar a pena de prisão e não a pena alternativa, nos termos do artigo 44, inciso III, do Código Penal. Descabe, assim, pretender punir apenas homofobia e transfobia com “penas alternativas”, já que o sistema penal atual já o permite, embora corretamente antevendo que determinados casos não merecem tal benesse, dada a gravidade da conduta concreta (ainda que não-violenta). Esses são temas que o discurso de “Estado Penal Mínimo só para homofobia e transfobia” não tem se preocupado em abordar – também já falamos isso aos defensores de dito discurso e, também aqui, não obtivemos nenhuma resposta a isso que não a mera não-mudança de opinião (reitero, um direito, claro, mas um direito que mostra, ao não contestar, que não sabe como contestar a argumentação não-contestada…).

Note-se ainda que a criminalização da homofobia e da transfobia respeita os dogmas da própria ideologia do Direito Penal Mínimo. Daí falarmos que somos a favor do minimalismo penal, embora de forma coerente. Dita teoria garantista (de garantismo penal) aponta, em síntese, que o Direito Penal deve ser usado apenas como última alternativa (ultima ratio), ou seja, apenas quando os demais ramos do Direito se mostrem insuficientes para coibir a opressão respectiva, bem como apenas quando haja “bem jurídico” relevante, que mereça o status de “bem jurídico-penal”. Pois bem, os demais ramos do Direito não têm se mostrado aptos a punir eficientemente homofobia e transfobia: leis estaduais e municipais antidiscriminatórias, como a Lei Estadual Paulista 10.948/01, não têm sido suficientes para coibir a homotransfobia com suas penalidades administrativas – advertência e multa para pessoas físicas, suspensão e cassação de licença de funcionamento, além daquelas outras, para pessoas jurídicas, no caso da lei citada. Por outro lado, evidentemente temos bem jurídico merecedor de tutela penal no caso, a saber, os direitos à livre orientação sexual e à livre identidade de gênero, direitos fundamentais implícitos aos direitos fundamentais (expressos) à liberdade, à não-discriminação e ao respeito à própria dignidade humana.

Logo, a própria ideologia do Direito Penal Mínimo (“Estado Penal Mínimo”) justifica a criminalização da homofobia e da transfobia, quando defendida coerentemente. Dizer o contrário é defender uma espécie de “abolicionismo penal” (muito) mal disfarçado de minimalismo. Logo, usemos coerentemente as ideologias invocadas…

De qualquer forma, a sociedade brasileira é punitivista, mostrando isso o próprio Projeto de Novo Código Penal, o qual traz diversos aumentos de penas mesmo para crimes culposos (praticados sem intenção, por negligência, imprudência e imperícia). Embora alguns paternalismos estatais sejam válidos e necessários (como a oposição à redução da maioridade penal, que é uma péssima política criminal como provaram países mundo afora, que a adotaram e isso só serviu para aumentar a lotação de presídios sem diminuir a violência social), descabe um paternalismo de Estado Penal Mínimo apenas para a criminalização da homofobia e da transfobia. Respeitamos em absoluto quem defende dita criminalização de acordo com o “Estado Penal Mínimo”, mas além dos citados problemas e da citada incoerência com a própria ideologia que dizem professar, entendemos que eles deveriam propor a reforma de todo o sistema penal para que todo o sistema penal se enquadre nessa ideologia de Estado Penal Mínimo. A impressão que dá é que não querem “comprar a briga” com a sociedade inteira e nem mesmo com os demais grupos vulneráveis protegidos pela Lei de Racismo (como negros e judeus, por exemplo). Se propuserem a reforma do sistema penal inteiro, terão nosso total apoio, mas não o terão por esse “minimalismo seletivo”, voltado apenas à homofobia e à transfobia, por isso, como visto, gerar intolerável hierarquização de opressões (não obstante essa claramente não seja a intenção daqueles que vimos isto defender até hoje, mas admitam ou não esse é um inegável efeito de tal diferenciação de punições). E que fique claro que defendemos essa coerência sistêmica da criminalização da homotransfobia com o restante do sistema penal não por uma linha formalista de “forma pela forma”, mas para evitar dita hierarquização de opressões.

Por fim, embora deva ser melhorado, o Projeto de Lei proposto em 2014 pela Deputada Maria do Rosário (PL 7582/2014) para punição dos “crimes de ódio” em geral parece um bom caminho, já que promove tanto a criminalização da discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero (onde carece de alguns complementos), quanto visa promover uma política de direitos humanos (de valorização e respeito) para a conscientização (capacitação e sensibilização) social para respeito às diferenças (que, no projeto, não se limitam às diferenças em razão de gênero e sexualidade). É um bom marco para a retomada deste debate (após o nefasto apensamento do PLC 122/06 ao Projeto de novo Código Penal, que significou, na prática, o “enterro” do mesmo). Aliás, é insuficiente alguma cláusula genérica sobre “outra conduta assemelhada” para criminalizar homofobia e transfobia: além de ser algo que muitos(as) criminalistas criticam, por suposto vício de “vagueza” (crimes vagos são inconstitucionais, a lei penal precisa ser clara, facilmente compreensível por todas as pessoas da sociedade), o que torna uma tal cláusula de constitucionalidade duvidosa (não estou dizendo que concordo com isso, apenas que há a discussão), sempre haveria a discussão sobre homofobia e transfobia serem “condutas assemelhadas” aos outros critérios (cor, etnia, procedência nacional, religião etc), donde a criminalização específica, deixando expressos os critérios da “orientação sexual” e da “identidade de gênero”, é medida absolutamente necessária. O Congresso Nacional Brasileiro precisa se assumir: se defensor dos direitos humanos da população LGBT e, portanto, a favor de sua proteção penal em igualdade de condições relativamente aos demais grupos vulneráveis especificamente protegidos pela lei penal vigente, ou então como homofóbico e transfóbico – sujeitando-se a sanções internacionais ante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos estar, há anos, demandando por proteção da população LGBT em toda a América Latina (o mesmo valendo relativamente à ONU).

Essas eram as considerações que tinha a fazer neste momento sobre o tema, além de ratificar os termos da “Nota de Repúdio ao Senado Federal por enterrar o PLC 122/06”, constante do seguinte link: http://goo.gl/P5fi4M.

Agradeço antecipadamente pela atenção e permaneço à disposição para novas contribuições, bem como para quaisquer esclarecimentos que se façam necessários.


Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
Atual Diretor-Presidente do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual (carta feita em nome próprio, não do grupo)
Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru
Especialista em Direito da Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo
Advogado – OAB/SP 242.668
Autor do Livro “Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos” (2ª Ed., São Paulo: Ed. Método, 2014). Co-autor dos livros “Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo” (org.: Maria Berenice Dias); “Minorias Sexuais. Direitos e Preconceitos” (org.: Tereza Rodrigues Vieira); “Manual do Direito Homoafetivo” e “Manual dos Direitos da Mulher” (ambos organizados por Carolina Valença Ferraz, George Salomão Leite, Glauber Salomão Leite e Glauco Salomão Leite).

 
 

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