Depois de 5 votos favoráveis, STF deixa decisão da cidadania trans para 22.02.2018

Um dia que tinha tudo para ser histórico tornou-se mais uma página na longa história de postergação na decisão sobre a cidadania trans no Brasil. No dia 22 de novembro de 2017, o STF finalmente iniciou o julgamento dos processos sobre o direito à mudança de nome e sexo de transexuais, independente de cirurgia de transgenitalização (RE 670.422/RS e ADI 4275). Ficou para 22 de fevereiro de 2018. Eu estava presente, pois fiz sustentação oral no dia 20 de abril e acompanhei a sustentação oral da primeira advogada trans a falar perante o STF no dia 07 de junho (entre outras, nos dois dias). Fiz um relato sobre os votos no dia, que transcrevo abaixo. Aliás, só faço esse relato com tanto atraso por conta da exaustão que me assolou neste fim de ano (é dura a luta por direitos humanos sendo proletário ao mesmo tempo, sempre digo).

Após os votos favoráveis dos Ministros Dias Toffoli, Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber, o Ministro Marco Aurélio, relator da ADI 4275, pediu vistas do processo. Sua Excelência mostrou irritação com longo atraso na demora na sessão e a ausência de três ministros, o que, com a declaração de impedimento do Ministro Toffoli para a referida ADI (por ele ter atuado como AGU no processo), afastou o quorum mínimo de oito ministros para a ADI (mas não para o RE). De sorte a que, por se tratar de processo de “controle concentrado” de constitucionalidade, que tem, juridicamente, uma importância ímpar, fez com que Sua Excelência considerasse conveniente julgar os dois processos conjuntamente.

Tenho absoluto respeito e admiração pelo Ministro Marco Aurélio. Naquele dia, aliás, ele passou no setor destinado a advogados para cumprimentar Maria Berenice Dias e demais presentes, e lhe disse que ele realmente personifica a frase que por vezes diz no STF: “A Suprema Corte é a última trincheira da cidadania”. Os votos do Ministro Marco Aurélio em geral personificam essa importante máxima da garantia dos direitos fundamentais, mesmo contra as paixões das chamadas “maiorias ocasionais” ou mesmo da maioria em geral (função contramajoritária da jurisdição constitucional).

Mas sou obrigado a dizer que Sua Excelência não agiu com o costumeiro acerto dessa vez. Ninguém duvida que o Ministro Marco Aurélio votará favoravelmente ao direito de mudança de nome e sexo de transexuais independente de cirurgia. Ele já deixou claro isso quando, no julgamento sobre o uso de banheiro por transexuais independente de sua identidade de gênero, indagou se havia alguma dúvida sobre qual seria sua posição neste outro caso (embora, ali, tenha feito comentários um tanto problemáticos, sobre se a mulher transexual em questão “parecia mulher [cisgênero]”, como se isso tivesse alguma relevância à identidade de gênero feminina). Ora, Excelência, com cinco votos favoráveis, o seu voto teria já definido a maioria do STF em prol da cidadania trans – e, permitindo-me a elucubração, não tenho dúvidas de que o voto do decano, o Ministro Celso de Mello, iria no mesmo sentido. Tenho relativa tranquilidade que o voto da Ministra Cármen Lúcia também assim decidiria. Então, tínhamos desenhado um maravilhoso 8×0 no RE 670.422/RS, o que seria uma vitória que as pessoas transexuais muito precisam no Brasil. Nada impediria que a ADI 4275 pudesse, em sua peculiaridade (a discussão sobre necessidade ou não de laudos de profissionais da saúde), ser julgada em outro momento.

Enfim, cabe agora aguardar que no dia 22 de fevereiro de 2018 o STF tenha o quorum adequado e, finalmente, decida essa importante questão dos direitos da população transexual. Bem como acolha a questão de ordem suscitada da tribuna por Maria Berenice Dias, e por mim em seguida reforçada, para que não limite o direito de mudança de nome e sexo sem cirurgia apenas a “transexuais”, excluindo “travestis” (único problema do voto do relator, Ministro Toffoli), estendendo o direito a pessoas “transgênero”, termo guarda-chuva que abarca travestis e transexuais (transgênero é a pessoa cuja identidade de gênero, expressão de gênero e comportamento não se coaduna com o sexo que lhe foi designado, ao nascer, em razão de seu genital, consoante definição da APA – Associação de Psicologia Americana, citada pelo voto do Ministro Dias Toffoli, inclusive).

Matéria do NLUCON, honrando com citação de parte de meu relato: <http://www.nlucon.com/2017/11/cinco-ministros-do-stf-votam-favor-de.html>. Eis a parte que cita meu relato: “Outro momento importante foi quando Paulo Iotti – que atua nos processos como amici curiae (“amigas da Corte”) – por meio da GaDvs e ABGLT – destacou que o único problema do voto do ministro Toffoli foi que ele se limitou em falar sobre transexuais, esquecendo de mencionar as travestis, e exigindo ação judicial. “No primeiro tema, (a advogada) Maria Berenice Dias pediu ‘pela ordem’, falando que há ações de travestis na Justiça também, então a tese de repercussão geral deveria abarcar ‘transgêneros’, tempo amplo que abarca travestis e transexuais”, pontuou. Roberto Barroso disse que tratava-se de um tema que eles não estavam preparados. Porém Iotti pediu para fazer esclarecimento (questão de fato), após as sustentações orais, para dizer que o termo transgênero abarca as travestis e transexuais, que é da Associação de Psicologia Norte-Americana (APA), citada pelo ministro Toffoli. Foi quando a ministra Cármen Lúcia o interrompeu, sem o deixar concluir.  “Felizmente o Ministro Toffoli entendeu meu ponto e disse que nada nos impede de fazermos memorial explicando o tema. Ou seja, deu certo minha ousadia! Depois, advogados se solidarizaram comigo, pela interrupção da Ministra Cármen Lúcia. Mas reitero, objetivo das falas, minha e de Berenice, atingido: fizemos os Ministros e as Ministras pensar sobre o tema. E o memorial virá! A vitória também, reitero”.

Segue a explicação dos votos já proferidos, consoante minhas anotações do dia 22.11.2017:

Ministro Dias Toffoli votou a favor de transexuais poderem mudar nome e sexo independente de cirurgia! E me citou, minha doutrina sobre a evolução do conceito de transexual, hoje como questão puramente identitária! Citou ainda Maria Berenice Dias, na violação de direitos oriunda da exigência de cirurgia! Reconheceu o direito à autodeterminação de gênero como direito de identidade de gênero! Obviamente sem constar na certidão de nascimento a causa da mudança e dados originários. Inteiro teor só se solicitada pel@ transexual ou por ordem judicial.

#DignidadeTrans

Ministro Alexandre de Moraes começou falando que não precisa de cirurgia pra mudar nome e sexo! “Não parece razoável exigir que transexuais submetam-se aos riscos e custos deste delicado procedimento cirúrgico”! Cita tendência do Direito Comparado no mesmo sentido!

2×0 pra dignidade trans! #AliançaNacionalLGBTI  #GADvS #CidadaniaTrans

“3×0! Ministro Fachin seguiu o Ministro Toffoli, como esperado! Eficácia horizontal dos direitos fundamentais na releitura do Direito Privado! Filtragem constitucional da dignidade humana e cláusula material de abertura do art. 5°, par. 2°: Princípios de Yogyakarta! Segurança necessária a essa minoria mencionada! Álvaro Ricardo de Souza Cruz: alteridade (Levinás) na interpretação do Direito. #DignidadeTrans

5×0 para a cidadania trans!

Ministro Barroso destaca dignidade humana como autonomia, direito ao desenvolvimento da personalidade de acordo com a identidade de gênero. Destaca inadequação da visão de que a vivência da identidade de gênero se limitaria à genitália. Afetividade transcende sexualidade (citou o termo homoafetividade, que transcende a homossexualidade, no termo difundido por Maria Berenice Dias). Destacou como na Constituinte (1987) o tema de hoje seria impensável, mas que a História felizmente tem caminhado rápido nos direitos da população LGBT, com forte atuação do STF, com a decisão das uniões homoafetivas e, agora, esta.

Ministra Rosa Weber. Destaca Corte Europeia de Direitos Humanos contra esterilização obrigatória (cirurgia) para reconhecimento do direito de transexuais terem seus direiros de personalidade respeitados. CIDH, caso Atalla Ryffo x Chile (2012), direito de orientação sexual, ingerência indevida na vida Familiar. Razão de decidir: estados devem se abster de situações de discriminações e devem adotar medidas positivas para modificar medidas discriminatórias na sociedade em detrimento de grupos de pessoas. Direito à identidade pessoal abarca o direito à identidade de gênero. Direito dos direitos da pessoa humana, só pela identidade pessoa pode ter autonomia no lugar que habita numa democracia liberal. Primeiro direito que permite a construção e exercício dos demais direitos. Dignidade humana como valor fonte que informa e conforma todo ordenamento constitucional. Elemento mínimo de concretização adequação do registro civil à real condição morfológica e psicológica do indivíduo, como ele se reconhece, sem correspondência necessária com expectativa social sobre o sexo biológico e anatômico. Antes, prevalece o aspecto psicossocial. Alteridade e respeito às diferenças. Igualdade como vetor interpretativo de resolução dos problemas, exigindo que sexualidade e sua manifestação na personalidade humana sejam assegurados, ainda que implique em diferença da identidade de gênero individual com padrão socialmente esperado. Igualdade e liberdade como quadro normativo. Solução constitucionalmente adequada: tratar de acordo com identidade de gênero, não sexo biológico!

#CidadaniaTrans

Anticlímax… Ministro Marco Aurélio pediu vista da ação de mudança de nome e sexo de pessoas trans sem cirurgia. Por querer julgar em conjunto com a ADI 4275, por ser processo objetivo, decisão mais abrangente… e não tinha quorum por ausência de 3 Ministros (Gilmar, Lewandowski e Fux) e Toffoli impedido nela por ter sido AGU no caso… Juridiquês… Vai votar a favor, isso está muito claro. Ministro Celso de Mello idem. Vitória garantida. Pena, mas Vitória garantida. #CidadaniaTrans

Comemoração: “Muito feliz por ter sido citado pelo Ministro Dias Toffoli, ainda mais porque foi na parte sobre a “evolução conceitual” pela qual passou o termo transexual – de “disforia de gênero” (sic), compreensão patologizante, para uma “questão puramente identitária”! Muito feliz também pela homenagem que recebi, junto com Maria Berenice DiasToni Reis, do Ministro Roberto Barroso. Que destacou nossa presença, enquanto “militantes históricos da causa LGBTI”! Segunda vez que sou homenageado assim pelo Ministro Barroso, cuja doutrina é a base do meu constitucionalismo, o qual muito aprecio (a primeira vez, no fim de 2015, no caso do uso de banheiro de acordo com a identidade de gênero das pessoas trans, quando ele me citou como “um velho militante dos direitos das minorias”). Fora o cumprimento muito atencioso que me mandou de sua cadeira o Ministro Celso de Mello, que muito respeito e admiro. Além da agradável conversa que tivemos com o Ministro Marco Aurélio, antes do início da sessão. Frutos imateriais e inestimáveis de muitos anos de estudos e militância. Permito-me celebrar, portanto”.

Problematização necessária: “O único problema do voto do Ministro Toffoli foi que ele se limitou a transexuais (não abarcando travestis) e exigindo ação judicial. No primeiro tema, Maria Berenice Dias pediu “pela ordem”, falando que há ações de travestis na Justiça também, então a tese de repercussão geral deveria abarcar “transgêneros”, termo amplo que abarca travestis e transexuais. O Ministro Roberto Barroso, depois, disse que esse era um tema para o qual provavelmente não estavam preparados. Então me preparei psicologicamente para falar ao final, esclarecendo que a APA – Associação de Psicologia (Norte-)Americana, citada pelo voto do Ministro Dias Toffoli, o que creio que tenderia a ajudar no convencimento do Tribunal. Pedi para fazer esse esclarecimento, uma “questão de fato”, que advogados podem fazer mesmo após as sustentações orais (se Tribunais gostam, é outro problema). Expliquei que ia esclarecer questão de fato pela fala do Ministro Roberto Barroso (contexto), que o termo transgênero abarca travestis e transexuais, que é da APA, citada pelo Ministro Toffoli, traz esse conceito, mas aí a Ministra Cármen Lúcia me interrompeu, não me deixando concluir, porque é tema a ser decidido quando o julgamento for retomado. Felizmente, o Ministro Toffoli entendeu meu ponto e disse que nada nos impede de fazermos memorial explicando o tema. Ou seja, deu certo minha ousadia! Depois, advogados se solidarizaram comigo, pela interrupção da Ministra Cármen Lúcia. Mas reitero, objetivo das falas, minha e de Berenice, atingido: fizemos os Ministros e as Ministras pensar sobre o tema. E o memorial virá! A vitória também, reitero. No fim de 2015, o Ministro Marco Aurélio deixou claro que seria favorável ao tema (deu a entender, disse sem dizer), o Ministro Celso de Mello certamente será também e acredito muito que da mesma forma votará a Ministra Cármen Lúcia. Então, temos 7×0 ou até 8×0, acredito! #ContraTransfobiaNossaLutaéTodoDia #CidadaniaTrans”.

Relato do Deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), honrando a mim e a Maria Berenice Dias com a citação: “Nesse momento, o Supremo Tribunal Federal julga se pessoas trans e travestis podem obter mudança do gênero no registro sem a necessidade de uma cirurgia de redesignação da genitália, um obstáculo que vinha sendo colocado por alguns julgadores de instâncias inferiores. O relator, ministro Dias Toffoli, já votou favoravelmente à dispensa da cirurgia, porque acolheu teses como a do advogado Paulo Iotti e de Maria Berenice Dias sobre violação de direitos oriunda da intervenção. O caso é objeto do nosso PL 5002/2013, a Lei João Nery, que, se fosse aprovada, não só permitiria a alteração sem a necessidade da cirurgia como também dispensaria a judicialização dos casos, permitindo que os cartórios realizassem o procedimento sem a necessidade de sentença favorável. Mesmo assim, caso a maioria do Tribunal decida por acompanhar o relator, já teríamos um avanço significativo em relação à situação atual. Apesar da composição do nosso atual Congresso Nacional ser a mais conservadora, ignorante e reacionária desde 1964 e, com isso, nos impor inúmeras derrotas legislativas no que tange a garantia e conquistas de direitos, a nossa vitória é política e cultural. Estamos pautando a discussão social e alguns julgamentos no STF, que tem votado assuntos de interesse da comunidade LGBT. Ao contrário de outros deputados que dizem que o Judiciário está legislando, eu louvo. Eu digo: que bom que o Judiciário está julgando essas matérias ou as pessoas LGBT não teriam seus direitos básicos garantidos. Acompanhem a sessão no link da TV Justiça: https://www.youtube.com/watch?v=RKA0GaOfQ4Q

Editado às 18h: o ministro Marco Aurélio pediu vista da ação e o julgamento será retomado em outra data. Por enquanto, o placar está 5 x 0 a favor da dignidade das pessoas trans”. Fonte: https://www.facebook.com/jean.wyllys/photos/a.201340996580582.48122.163566147024734/1617089608339040/?type=3&theater (último acesso em 26.12.2017)

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