Indulto de Natal e decisão de Cármen Lúcia (ADI 5874 MC/DF). Não tenho dúvidas que o STF possa, ainda que excepcionalmente e de forma muito bem fundamentada, controlar a constitucionalidade de indultos. Não há poder incontrolável constitucionalmente em um Estado de Direito. Quem quer que o indulto seja absolutamente incontrolável, mesmo se arbitrário for, quer ressuscitar o Poder Moderador da Constituição do Império. Um absurdo. Então, se entender-se que o ato é arbitrário (destituído de qualquer razão de ser), ou que viola a proibição de proteção insuficiente inerente ao princípio da proporcionalidade (este segundo fundamento, como imaginei, foi o utilizado pela Ministra Cármen Lúcia), então deve-se suspendê-lo inicialmente e, depois, declará-lo definitivamente inconstitucional.
A grande questão é que tenho dúvidas se era o caso de considerar inconstitucional a mudança de ¼ para 1/5 de cumprimento da pena para admitir o indulto (não o tenho no que tange a perdão de multas). Pois, possibilidade de controle (material) de sua constitucionalidade à parte, há uma larga margem de discricionariedade política no indulto, que realmente é um instrumento de política criminal a ser usado segundo conveniência e oportunidade de quem ocupa a Presidência da República. Mas discricionariedade notoriamente não se confunde com arbitrariedade. Tenho argumentado que, obviamente, um indulto que abolisse a pena de quem cumpriu 1/40 dela seria obviamente inconstitucional, por cristalina/evidente violação da proibição de proteção insuficiente, decorrente do princípio da proporcionalidade e mesmo do direito fundamental à segurança pública (art. 5º, caput). Indultar apenas aliados políticos também geraria profunda arbitrariedade (privilégio inconstitucional, no caso). Exemplos extremos ajudam apenas a pontuar um argumento, temos que saber a partir de quando algo sai da discricionariedade. Fosse 1/10 da pena, ainda tenho convicção da inconstitucionalidade. Mudar do tradicional ¼ para 1/5 já tendo a achar que não. A lei penal usa critérios que variam de 1/6 à metade. Então, talvez, um parâmetro bom fosse o do 1/6 como limite do indulto. Há quem argumente que os limites do indulto seriam só os taxativamente previstos na Constituição.
Foi invocado contra mim a máxima de que restrições de direito só são admissíveis quando expressamente positivadas no texto normativo (o que é correto). Ocorre que o indulto já é uma interferência de um Poder (Executivo) na decisão de outro (Judiciário), no que tange ao tempo de cumprimento de pena. É norma excepcional – e normas excepcionais é que se interpretam restritivamente. Então, descabe o literalismo de conveniência de quem não quer enfrentar os argumentos materiais (substantivos) que apresento. Goste ou não, a “proibição de proteção insuficiente” é notória norma constitucional (implícita) de Estados Democráticos de Direito. E em Direito a interpretação deve ser sempre sistemática, nunca meramente literal e isolada. O indulto não é norma abstraída do sistema constitucional, que veda arbitrariedades e proteções insuficientes. Ao passo que não dá pra separar “fundamentação” de “competência” para tomar a decisão nesse caso, como outro argumento contrário apontou. Presidente não tem “competência” para fazer “indultos inconstitucionais”. A cisão pretendida é metafísica e completamente descabida.
Em suma, não é admissível nem exalar punitivismo e ficar feliz com suspensão de indulto porque se quer ver condenados criminalmente apodrecendo na cadeia, mas também não se pode querer atribuir um poder soberano, inquestionável, a la Poder Moderador do Império, ao(à) Presidente na hora do indulto. Nem ter essa desconfiança absoluta do Judiciário, considerando como “ativismo” (inconstitucional) tudo que sai da lógica do “juiz-boca-da-lei” (do mero silogismo). Deve-se conceder uma ampla margem de discricionariedade política ao indulto, por se tratar de decisão de política criminal da Presidência da República. Mas a vedação a arbitrariedades e à proteção insuficiente são inerentes ao Estado Democrático de Direito.
Por fim, quem quiser debater comigo, que pelo menos leia a decisão e, mais do que isso, enfrente seus fundamentos. Muito fácil ler e ignorar tudo que ela fala ao comentá-la. Link a ela no primeiro comentário. Concordo plenamente com as considerações da Ministra Cármen Lúcia sobre a natureza jurídica e os limites do indulto (início da fundamentação da decisão).
Link para site que disponibiliza a íntegra da decisão (em outro link, rs): https://www.oantagonista.com/brasil/confira-integra-da-decisao-de-carmen-lucia-sobre-o-indulto/
Post Scriptum (31.12.2017)
Como me cansam criminalistas que só invocam teorias penais na parte que lhes convém… nos dois lados, tanto punitivistas quanto garantistas. Último caso (cf. parágrafo seguinte), os(as) garantistas, no tema do indulto suspenso por Cármen Lúcia (punitivista invocando “garantismo integral” ignorando o “garantismo tradicional” da defesa é insuportável também, esclareça-se). Realmente, considerar 1/5 de cumprimento de pena como “proteção insuficiente” ao ponto de gerar inconstitucionalidade é demais. Errou a Ministra, já que o usado até há pouco era ¼. Na minha manifestação anterior, falei que 1/6 talvez fosse um critério bom para estabelecer um limite, já que usado por vezes pela lei penal. O que falei e reitero sempre é que não se pode ressuscitar o Poder Moderador da Constituição do Império sob a forma de indulto. Pode perdoar pena só de um aliado político? Pode perdoar pena de quem cumpriu 1/40 da pena? Defendi e defendo que deve-se ter MUITA deferência na análise do indulto presidencial, pela larguíssima margem de discricionariedade da decisão de política criminal aí existente. Mas discricionariedade não é arbitrariedade. Então, só casos teratológicos (monstruosos – o cúmulo do estapafúrdio, sempre brinco) justificam a revisão judicial nesse caso. Daí ter errado Cármen Lúcia na questão do 1/5 da pena (não na parte do perdão a multas, esse sim teratológico e contrário à própria origem e teleologia do indulto humanitário e que a jurisprudência exige critérios específicos para o perdão, como a decisão bem explicou). Agora a discussão geral está em muita gente (racional e de boa-fé, reconheço, obviamente) está entendendo que indulto, pela Constituição atribuir-lhe privativamente ao/à Presidente, não poderia nunca ser questionado judicialmente fora de descumprimentos de hipóteses constitucionais expressas. Mas Direito não se resume a texto normativo – e indulto é uma interferência do Executivo no Judiciário, que é quem tem que definir penas. Então a norma do indulto, como excepcional, deve ser interpretada restritivamente, com parcimônia.
Aí me vem criminalista falar que não acha certo falar em proibição de proteção insuficiente (notória norma constitucional, implícita aos princípios da proporcionalidade e do Estado de Direito, assim reconhecida nos Tribunais Constitucionais mundo afora) para restringir direitos, por “ativismo judicial” (sic). TUDO agora é “ativismo” (inconstitucional) fora do silogismo jurídico, “incrível”… O que respondi foi o seguinte: “Negar a proibição de proteção insuficiente como norma constitucional é, além de fechar os olhos para jurisprudência constitucional de décadas, algo que também contraria o direito à segurança. Podem revogar homicídio como crime e “tudo bem”? Estupro? Roubo? Se não aceita a proteção insuficiente, não vai aceitar a vedação do retrocesso social aqui também… Desculpe, isso é visão que deliberadamente ignora que há sim o dever de proteção social. Direito Penal também existe para proteção da sociedade. Teoria do Bem Jurídico, totalmente garantista (até por isso está em crise…), prega que só pode ser crime aquilo que é intolerável à convivência social. Algo que ganhou força no Iluminismo pra descriminalizar condutas, ok. Mas não se interpreta teoria só no lado que convém. A contrario sensu, aquilo que é intolerável à vida social deve ser crime. E nem vejo com bons olhos a teoria dos “mandados de criminalização implícitos”, que prega que atendidos os pressupostos do Direito Penal Mínimo (bem jurídico indispensável à vida social e ultima ratio [ineficácia dos demais ramos do Direito para punir a conduta em questão]), haveria obrigação constitucional de criminalizar. Rejeitada essa teoria, que se veja “dever moral” de criminalizar. Mas não se pode ser minimalista só quando convém. É uma teoria com pressupostos claros. Tem critérios qualitativos (os citados), não quantitativos. Fugir desses critérios quando não convém (quando eles demandam a criminalização) não é ser minimalista. É ser abolicionista. Que se assuma como tal.
E em suma, vocês querem ressuscitar o Poder Moderador da Constituição Imperial no indulto. Num litetalismo assistemático, querem até mesmo aceitar casos teratológicos (o 1/40 etc) pela ideologia descriminalizadora. E tudo é ideológico, minha posição e a de vocês. Só me choca e cansa as pessoas serem minimalistas apenas quando convém, ignorando os critérios da teoria do Direito Penal Mínimo quando eles não convém à ideologia de descriminalização. Que se assuma o abolicionismo, como dito. E acho indefensável querer-se atribuir poder moderador imperial ao indulto, para casos teratológicos, como os citados.
Inaceitável, portanto, é usar teorias apenas quando convém à própria ideologia”.
E não me venham com o espantalho “ad hominem” de “esquerda punitiva” (sic). Eu exijo coerência com as teorias invocadas. Direito e Política não se confundem no sentido estrito. Quem discorda que mude de planeta (!). Por exemplo, toda a crítica de esquerda a Moro se dá por ele ignorar garantias do devido processo legal em suas condenações. A crítica supõe a diferença entre Direito e Política, do contrário, ela perde sua legitimidade.
Enfim. Respeitosamente, embora incisivamente, divirjo dos(as) colegas em questão.