Ontem, quarta-feira, dia 13 de março de 2013, foi realizada uma Audiência Pública com o Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e o Coordenador da Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual (CADS) da Prefeitura de São Paulo (PMSP), que teve o intuito de ouvir as demandas da população LGBT e suas expectativas com esta nova gestão. Foi um ótimo evento no qual o Secretário se mostrou amplamente aberto a ouvir, e efetivamente ouviu diversas propostas em diversos níveis. Se a ata for divulgada e eu dela tiver ciência, a colocarei aqui.
De minha parte, entreguei ao Secretário o parecer abaixo, em resposta a uma posição da Procuradoria do Município à qual a CADS está vinculada no final de 2012, que disse (para meu choque) que o(a) advogado(a) do Centro de Combate à Homofobia da Prefeitura de São Paulo (CCH/PMSP) não poderia representar vítimas de homofobia e transfobia nem mesmo nos processos administrativos da Lei Estadual Anti-Homofobia/Transfobia (Lei Estadual 10.948/01), por isto supostamente não estar autorizado no Decreto Municipal n.º 52.652/11, que deu um marco normativo ao CCH/PMSP, o que, data maxima venia, é indefensável porque referido decreto determina o “recebimento, encaminhamento e acompanhamento de casos de discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero de vítimas que precisem do apoio jurídico do Centro”, consoante interpretação sistemática dos artigos 1º, I e II, e 7º, I e VI, do referido decreto. Por outro lado, em resposta a outros, cabe lembrar que o interesse público de enfrentamento/combate à homofobia/transfobia coincide com o interesse particular da vítima de que haja punição de quem lhe discriminou, logo, descabido dizer que o advogado do CCH/PMSP não poderia representar a vítima porque isso seria um mero “interesse privado” dela. Ademais, o Município, como os Poderes Públicos em geral, tem o dever de garantir proteção eficiente àqueles que nele residem e de fazer tudo que está a seu alcance para punir fatos ilícitos cometidos em seu território (princípio da proporcionalidade na acepção da proibição de proteção deficiente), donde é absolutamente legítimo, além de obrigatório, fornecer este apoio jurídico aqui defendido àqueles(as) que dele necessitem. O parecer desenvolve estes e outros temas de forma ampla.
Assim, espero que o Secretário se conscientize de tais fatos ao analisar meu parecer e não acolha a posição da Procuradoria do Município, aqui criticada. Aguardemos, também, o feedback do Secretário e o que ele quis dizer quando, ao final, disse, após se referir à minha fala sobre a necessidade de garantir estrutura efetiva [pessoal/cargos] ao CCH, que irão rever a “forma de atendimento” nos mecanismos – espero que continue sendo feito o atendimento jurídico que forneça orientação jurídica e apoio jurídico (pelo menos) nos processos administrativos da Lei Estadual Anti-Homofobia/Transfobia (Lei Estadual n.º 10.948/01).
[PS: o Coordenador da CADS disse que só em Janeiro/13 foi feito um “fluxo” dos casos – não foi a isso que vou falar que ele disse depois que quis se referir, mas cabe lembrar que há anos há o “Mapa da Homofobia Denunciada da Cidade de São Paulo”, que traz todas as denúncias feitas ao CCH, que podem ser consultadas por funcionários da CADS. É importante deixar isso destacado, para evitar mal-entendidos, pena que não me foi permitido esclarecer isso no final, sob alegação de falta de tempo e que eu já tinha falado – era um esclarecimento importante, uma pena que não me permitiram um minuto para fazê-lo a tod@s, mas enfim, como dito, foi um evento ótimo, aguardemos agora o feedback do Secretário sobre as demandas a ele apresentadas]
PARECER
São Paulo, 13 de março de 2013.
INTERESSADO: SMDHC/CADS/CCH
ASSUNTO: Garantia de Advogados ao Centro de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate à Homofobia da Prefeitura de São Paulo. Processo para assinatura de Termo de Convênio sem Transferência de Recursos com a Defensoria Pública e o Governo do Estado de São Paulo.
SMDHC/CADS.
Sr. Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania.
EMENTA. Parecer da Procuradoria Municipal contra atuação de advogado do CCH/PMSP em processos administrativos de homofobia/transfobia (Lei Estadual n.º 10.948/01). Mudança na titularidade da Pasta. Princípio da impessoalidade da Administração Pública: possibilidade de reconsideração, caso já acolhido o parecer, ou seu não-acolhimento, caso não apreciado. Correta interpretação dos artigos 1º, I e II, e 7º, I e VI, do Decreto Municipal Paulistano n.º 52.652/2011 e interpretação sistemática do mesmo com o artigo 4º, II, da Lei Estadual n.º 10.948/01: possibilidade de atuação do advogado do CCH/PMSP em favor das vítimas de homofobia/transfobia praticada(s) no Município de São Paulo. Coincidência do Interesse Público de Enfrentamento e Repressão da Homofobia e da Transfobia com o Interesse Particular das Vítimas em punir os(as) ofensores(as) específicos(as). Princípio da Juridicidade na atuação da Administração Pública, que superou a vetusta exigência de legalidade estrita (lei formal, em sentido estrito) para atuação do Poder Público. Ausência de prejuízos a quem quer que seja na referida atuação do advogado do CCH/PMSP. Dever de agir da Administração Pública. Princípio da Proporcionalidade na acepção da Proibição de Proteção Deficiente. Verdadeira banalidade do mal homofóbico que aflige nossa sociedade. Efetiva proibição deficiente à população LGBT que demanda a atuação do Poder Público Municipal, dentro de seu âmbito territorial, para garantir-lhe a devida proteção. Fundamentos constitucionais (arts. 3º, IV, e 5º – promoção do bem estar de todos e igualdade material).
Como é de conhecimento da Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual da Prefeitura de São Paulo (CADS/PMSP), foi proferido parecer pela Nobre Procuradora Municipal, salvo engano já aposentada, no qual ela opinou pela (suposta) impossibilidade de o Centro de Combate à Homofobia da Prefeitura de São Paulo (CCH/PMSP) de representar judicialmente os usuários de referido equipamento público e mesmo de representa-los no âmbito de processos administrativos da Lei Estadual n.º 10.948/01, que pune atos de homofobia e transfobia no Estado de São Paulo. Entendeu dessa forma por considerar que isto estaria fora das atribuições que o Decreto Municipal n.º 52.652/2011 concedeu ao CCH/PMSP. Assim, opinou pela realização das adaptações respectivas no plano de trabalho e na minuta de convênio (sem transferência de recursos), o que foi referendado pela Nobre Secretária Municipal de Participação e Parceria. Tal se deu no processo administrativo municipal que visa(va) a renovação do Termo de Cooperação Institucional com a Defensoria Pública para Efetivação da Lei Estadual n.º 10.948/01, do qual o signatário teve ciência pelo fato de ter sido o assessor jurídico da CADS e do CCH de junho/2011 a janeiro/2013.
Contudo, data maxima venia e não obstante o elevado respeito, a estima e a consideração que o signatário adquiriu pela Nobre Procuradora em questão durante o tempo em que trabalhou para a CADS e o CCH, entende-se que a posição por ela esposada não merece prosperar, na medida em que não coerente com a melhor interpretação do Decreto Municipal n.º 52.652/11, de sorte a possibilitar o não acolhimento ou, se necessária, a reconsideração de tal pelo novo Secretário da Pasta à qual está vinculada a CADS/PMSP, razão pela qual entende-se ser possível uma nova análise da questão pelo novo titular da Pasta.
Com efeito, nos termos do artigo 1º, I e II, do Decreto Municipal Paulistano n.º 52.652/2011, compete ao CCH/PMSP “receber, encaminhar e acompanhar toda e qualquer denúncia de discriminação homofóbica e/ou violência que tenha por fundamento a orientação sexual e/ou identidade de gênero” e “garantir apoio psicológico, social e jurídico aos casos registrados no Centro, conforme suas necessidades específicas”, ao passo que, segundo o artigo 7º, I e VI, do mesmo decreto, compete especificamente aos advogados do CCH/PMSP “realizar o atendimento, encaminhamento e acompanhamento dos casos que necessitem do apoio jurídico prestado pelo Centro” e “outras atribuições afins” (grifos nossos). Ora, encaminhar qualquer denúncia de homofobia/transfobia significa formalizar referida denúncia aos órgãos competentes, como a Comissão Processante Especial da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Governo do Estado de São Paulo (CPE/SJDC/SP) relativamente a processos da Lei Estadual n.º 10.948/01, ao passo que a afirmação da necessidade de acompanhar toda e qualquer denúncia de homofobia/transfobia de casos que necessitem de apoio jurídico do CCH/PMSP evidentemente abrange a possibilidade de o advogado do CCH representar a vítima de homofobia/transfobia no respectivo processo administrativo da Lei Estadual n.º 10.948/01 e mesmo em esfera judicial, no mínimo para evitar perecimento de direitos ou em outras situações enquadráveis como urgentes. Até porque, no mínimo, a atribuição ao advogado do CCH/PMSP de “outras atribuições afins” também lhe garante tal competência de atuação em favor das vítimas respectivas, já que tal atuação processual evidentemente é uma atribuição afim ao atendimento jurídico dos usuários do referido equipamento.
Como se vê, data maxima venia, é indefensável dizer que a literalidade do Decreto Municipal n.º 52.652/11 não permitiria a atuação do(a) advogado(a) do CCH/PMSP em favor de vítimas de homofobia/transfobia, no mínimo, nos processos administrativos da Lei Estadual n.º 10.948/01 e mediante atuações judiciais que necessitassem desta atuação para evitar perecimento de direitos e outras situações enquadráveis como urgentes.
Assim, fica claro que a Nobre Procuradora claramente fez uma interpretação restritiva do Decreto Municipal Paulistano n.º 52.652/2011 para (aparentemente) entender que os dispositivos em questão teriam “dito mais do que queriam”, visto que, considerados unicamente seus limites semânticos, evidentemente que os artigos 1º, I e II, e 7º, I e VI, do referido estatuto normativo permitem a representação das vítimas de homofobia e transfobia por advogado do CCH/PMSP.
Contudo, a interpretação atribuída pela Nobre Procuradora acaba por restringir a quase nada a atuação do advogado do CCH/PMSP, que só poderiam fornecer “conselhos” (consultas) às vítimas de homofobia e transfobia e realizar um serviço de “despachante” de casos para a Defensoria Pública… Ora, que espécie de “acompanhamento” seria esse que o advogado do CCH/PMSP poderia fazer? Se limitar a verificar cópias de processos trazidas pelos usuários do CCH/PMSP para fornecer-lhes uma opinião jurídica? Data maxima venia, atuação pífia terá o CCH/PMSP se não puder garantir apoio jurídico relativo à representação das vítimas em processos de homofobia e transfobia relativos à Lei Estadual n.º 10.948/01 das pessoas em situação de carência financeira incapazes de contratarem advogado(a) para lhes representar.
Referida interpretação da Nobre Procuradora vai contra a essência da própria Lei Estadual n.º 10.948/01, cujo artigo 4º, II, reconhece de[s] competente[s] a prerrogativa de apresentar denúncias de homofobia e transfobia para instauração do(s) processo(s) administrativo(s) respectivo(s). Ora, sendo o CCH/PMSP uma evidente autoridade competente para pleitear a instauração dos processos administrativos da Lei Estadual n.º 10.948/01, evidentemente que ele tem a si implícita a prerrogativa de representar a(s) vítima(s) respectiva(s) caso seja do interesse dela(s) e mesmo atuar de ofício nos processos, como assistente ou terceiro interessado que seja, para que seja coibida a homofobia/transfobia por ele denunciada. Afinal, os processos administrativos da Lei Estadual n.º 10.948/01 visam resguardar o interesse público nela positivado, de repressão à homofobia/transfobia, donde as autoridades competentes que ofertam denúncias relativas a tais temas, como o CCH/PMSP, evidentemente têm efetivo interesse jurídico e competência para atuar nos referidos processos (e, ainda que descabidamente se entenda que o CCH/PMSP não seria uma autoridade competente, no mínimo se encontra em situação análoga a Organizações Não-Governamentais de defesa dos direitos humanos da população LGBT, que têm legitimidade para tal por força do artigo 4º, III, da citada lei).
O interesse público municipal de enfrentamento/combate à homofobia/transfobia coincide com o interesse particular de punir aquele(a) que lhe discriminou, agrediu, ofendeu etc, razão pela qual não há que se dizer que não caberia tal atuação por ser mero interesse privado da vítima. Não. O Município tem legítimo interesse jurídico de que haja punição a quem discriminar, ofender, agredir ou matar (etc) pessoas por sua mera orientação sexual ou identidade de gênero, logo, amplamente possível essa representação, por evidente coincidência de interesses público e privado. Regulamente-se o tema caso se ache necessário no que tange à atuação do(a) advogado(a) do CCH/PMSP de uma forma que garanta a lisura da atuação ao mesmo tempo em que não se criem embaraços burocráticos que, na prática, a inviabilizem, mas não se deixe de reconhecer a legitimidade jurídica de tal atuação.
Lembre-se de algo já pacífico na hermenêutica contemporânea, em especial na hermenêutica constitucional, a saber, o fato de que a norma jurídica é o fruto da interpretação do texto normativo, o que significa que o intérprete participa ativamente da criação da norma jurídica, respeitados, apenas, os limites semânticos do texto normativo em questão[1]. De há muito já se superou a concepção defendida pela Escola da Exegese, que pode ser bem explicada pela máxima de Montesquieu segundo a qual o juiz seria mera boca que pronuncia as palavras da lei, um ser inanimado que não poderia sequer interpretar o texto normativo (então confundido com a norma jurídica), limitando-se apenas a realizar um raciocínio dedutivo (um silogismo) da hipótese prevista no texto (premissa maior) relativamente aos fatos efetivamente ocorridos (premissa menor) para se chegar a uma sentença (conclusão). Não se adota mais uma tal concepção, pela constatação de que não há significados ocultos nos textos normativos a serem “descobertos” pelo intérprete axiologicamente “neutro”, na medida em que, sendo a interpretação jurídica a atribuição de sentido a determinado texto normativo, essa atribuição de sentido/significado acaba sendo fortemente influenciada pelas compreensões do intérprete sobre os fatos da vida, as quais, por sua vez, decorrem indissociavelmente das pré-compreensões do intérprete, razão pela qual exige-se contemporaneamente (e de há muito) que o Estado-juiz explicite suas compreensões e suas pré-compreensões, bem como se fundamente em normas jurídicas para fins de controle da racionalidade e da legitimidade constitucional e legal de suas decisões – o que vale, evidentemente, para os intérpretes não-oficiais em geral (usando a terminologia de Kelsen com alguma ressignificação, dividem-se os intérpretes entre autênticos, basicamente juízes/as, por institucionalmente incumbidos de solucionar os casos concretos, e inautênticos, que seriam formados pelas pessoas em geral, fossem juristas ou não, que expõem suas opiniões sobre as interpretações possíveis e, nas suas opiniões, as interpretações juridicamente válidas – Kelsen acreditava que não seria possível defender-se uma interpretação correta, donde o juiz escolheria discricionariamente, por mero ato de vontade, a interpretação que julgasse melhor ao caso concreto, mas isso também já se superou no mundo contemporâneo, consoante a tese de Dworkin sobre a única resposta correta a cada caso concreto, que Lenio Streck chama de resposta constitucionalmente adequada ao caso concreto).
Enfim, o que se quer dizer com essas elucubrações teóricas é que a interpretação atribuída aos dispositivos do Decreto Municipal n.º 52.652/11 pela Nobre Procuradora Municipal não é a que melhor se coaduna com o chamado espírito da lei, no caso, o espírito do decreto, a saber, a finalidade objetivamente aferível do mesmo, que é a de garantir um enfrentamento/combate efetivo da homofobia e da transfobia, razão pela qual deve ser atribuída uma interpretação ao referido decreto que se coadune com essa finalidade a ele inerente, logo, com a sua teleologia.
Lembre-se, sobre o tema, que a interpretação teleológica SEMPRE há de prevalecer sobre a literal quando isto não afrontar o significado dos enunciados linguísticos constantes do texto normativo, o que se faz também nos casos de lacunas, preenchendo-as por intermédio da interpretação extensiva ou da analogia em casos nos quais não se está a querer reconhecer que as palavras constantes do dispositivo legal ou constitucional abrangem as situações não-regulamentadas, mas que a ratio do dispositivo em questão o faz. Isso ocorre porque o Direito é uma ciência finalística, o que significa que todo enunciado normativo tem uma finalidade e, portanto, cabe ao intérprete prestigiar esta na medida em que a literalidade foi criada justamente para proteger dita finalidade[2], devendo ficar claro que a menos que o texto normativo seja expresso ao restringir o regime jurídico ou, neste caso, a atuação do advogado do CCH a determinada situação por ele expressamente citada (com locuções como “só”, “apenas”, “tão-somente” etc), será possível estender dito regime jurídico às situações por ele não expressamente mencionadas por intermédio da interpretação extensiva ou da analogia quando a teleologia do texto normativo aponte que ditas situações possuem a mesma finalidade que inspirou ou inspira a proteção daquela situação expressamente citada/regulamentada.
O Direito é uma ciência valorativa, melhor explicada através da teoria tridimensional do Direito, de Miguel Reale, segundo a qual a norma é oriunda da aplicação de uma valoração a um fato[3]. É a valoração o elemento mais relevante: protege-se determinada situação fática por um motivo, donde, caso se entenda (equivocadamente) que a mera literalidade normativa do Decreto Municipal n.º 52.652/11 não abarcaria a atuação direta do advogado do CCH em favor das vítimas de homofobia e transfobia, considerando que uma tal atuação não está vedada pelos limites semânticos de tal decreto e que ela é muito mais compatível com o espírito normativo respectivo por garantir muito maior efetividade ao enfrentamento/combate da homofobia e da transfobia do que a alternativa aqui criticada, de mera consultoria jurídica sobre as discriminações em geral sem garantia de apoio jurídico nenhum no tocante à repressão de tais condutas discriminatórias, tem-se que devem ser interpretados teleologicamente os artigos 1º, I e II, e 7º, I e VI, no sentido de garantirem o apoio jurídico também (e no mínimo) por intermédio da representação das vítimas nos processos administrativos da Lei Estadual n.º 10.948/01 e de atuações judiciais excepcionais para evitar o perecimento de direitos e em casos outros considerados urgentes, de acordo com cada caso concreto.
Logo, temos normas jurídicas autorizadoras da atuação do CCH/PMSP em favor das vítimas de homofobia e transfobia nos processos administrativos da Lei Estadual n.º 10.948/01, ao menos quando, data maxima venia, devidamente interpretadas. Entendimento em sentido contrário implica em declarar a anti-juridicidade de tais disposições normativas do Decreto Municipal Paulistano n.º 52.652/2011, o que parece um grave equívoco e uma violação ao intuito de combater/enfrentar com efetividade a homofobia e a transfobia no Município de São Paulo.
Nesse sentido, cabe lembrar que o próprio princípio da legalidade estrita já teve sua compreensão atualizada pela doutrina administrativista contemporânea, que o entende como exigência de legalidade em sentido amplo, donde permissivos constitucionais e mesmo infralegais podem autorizar a atuação do Poder Público. Por essa razão, esse princípio é contemporaneamente compreendido como princípio da juridicidade. Ou seja, o apego ao dogma da legalidade estrita em detrimento do reconhecimento da juridicidade por força da principiologia constitucional implica em postura superada, por incompatível com o neoconstitucionalismo contemporâneo[4], que prega a irradiação das normas constitucionais na interpretação das normas jurídicas em geral – tanto que, como visto, mesmo no Direito Administrativo, criado originalmente sob o dogma da legalidade estrita, tem-se reconhecido a superação do princípio da legalidade estrita pelo princípio da juridicidade, em construção doutrinária que visa reconhecer justamente que não é necessária uma lei expressa para se reconhecer a juridicidade de algo quando este algo seja decorrente da interpretação dos dispositivos constitucionais aplicáveis ao caso.
Assim, a legalidade exigida para a atuação da Administração Pública deve ser entendida como legalidade em sentido amplo, no sentido de poder a Administração agir quando autorizada pela lei ou pelas normas constitucionais (legalidade constitucional), consoante já reconhecido pela doutrina administrativista contemporânea, aqui exemplificada por Dirley da Cunha Junior[5], Maria Sylvia Zanella di Pietro[6] e Diogo de Figueiredo Camargo Neto[7]. Nada mais natural que tal evolução da exigência de legalidade estrita para juridicidade para legitimar a ação estatal, visto que a exigência de lei formal para a atuação estatal surgiu em uma época em que não se falava em aplicabilidade imediata das normas constitucionais (verdadeira pré-história do Estado Constitucional), donde o neoconstitucionalismo/pós-positivismo da contemporaneidade exige que se permita a atuação estatal pela concretização de normas constitucionais e não apenas mediante autorização legal expressa, o mesmo valendo para autorizações decorrentes de atos infralegais de auto-organização do Poder Executivo, no presente caso, o Decreto Municipal n.º 52.652/2011 relativamente à estrutura necessária para o enfrentamento da homofobia e da transfobia no Município de São Paulo. Até porque, considerando que a exigência de permissão normativa para a atuação estatal surgiu como forma de se garantir que o Estado não violasse arbitrariamente os direitos individuais dos cidadãos[8] e considerando que não viola o direito de ninguém o ato estatal de permitir, via decreto organizador da estrutura municipal de enfrentamento da homofobia e da transfobia mediante atribuição de competência para representar as vítimas respectivas (ao contrário, garante uma legítima proteção estatal a tais vítimas de atos violentos, constrangedores, intimidatórios, vexatórios e/ou discriminatórios motivados na sua orientação sexual e/ou identidade de gênero), não se pode ver óbice à atuação de advogados do CCH/PMSP em favor de vítimas de homofobia/transfobia praticadas no Município de São Paulo nos processos administrativos respectivos. Ao contrário, o dever de agir[9] da Administração Pública impõe o reconhecimento de tal competência de atuação dos advogados do CCH/PMSP quando isso seja necessário e seja essa a vontade das vítimas como forma de respeito aos citados princípios constitucionais da igualdade, dignidade da pessoa humana e liberdade real.
Note-se que a Constituição Federal, ao demandar pela promoção do bem-estar de todos (art. 3º, IV), evidentemente autoriza a atuação dos entes federativos na garantia de integral proteção jurídica, o que autoriza a disponibilização de advogado por equipamento municipal especializado em direitos humanos de minorias e grupos vulneráveis. Inclusive o princípio da isonomia (art. 5º, caput) autoriza tal medida, na acepção notória de igualdade material de garantia de tratamento desigual a situações desiguais que demandem maior proteção jurídica (igualdade real), visto que a população LGBT tem sofrido cotidianamente violências e discriminações diversas que as inúmeras notícias na mídia (virtual principalmente) deixam evidentemente notória – e fatos notórios não precisam ser provados (cf. CPC 334, I).
Em favor desta interpretação, de dever de ação do Município em garantir apoio jurídico via o CCH/PMSP às vítimas de homofobia/transfobia praticada(s) no Município de São Paulo, temos o princípio da proporcionalidade na acepção da proibição de proteção deficiente. Como se sabe, além da proibição do excesso, o princípio da proporcionalidade, implícito que é ao devido processo legal substantivo (CF/88, art. 5º, LIV) também garante aos cidadãos um direito a uma proteção eficiente do Poder Público (cf. TJSP, Apelação Criminal n.º 0052878-39.2006.8.26.0050).
Como bem diz Ingo Sarlet, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, para além da irradiação dos direitos fundamentais na interpretação dos textos normativos infraconstitucionais, traz em si um dever geral de efetivação dos direitos fundamentais pelo Estado, no sentido de que se impõe ao Estado um dever de proteção dos cidadãos, donde ao Estado “incumbe zelar, inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos não somente contra os poderes públicos, mas também contra agressões oriundas de particulares e até mesmo de outros Estados”[10], razão pela qual “na sua função de deveres de proteção (imperativos de tutela), as normas de direitos fundamentais implicam uma atuação positiva do Estado, notadamente, obrigando-o a intervir (preventiva ou repressivamente) inclusive quando se tratar de agressão oriunda de outros particulares”, algo reconduzível ao próprio princípio do Estado de Direito, “na medida em que o Estado é o detentor do monopólio, tanto da aplicação da força, quanto no âmbito da solução dos litígios entre os particulares, que (salvo em hipóteses excepcionais, como o da legítima defesa), não podem valer-se da força para impedir e, especialmente, corrigir agressões oriundas de outros particulares”[11].
Assim, ainda segundo Sarlet, cabe lembrar que “tal dimensão assume destaque na esfera jurídico-penal, já que um dos importantes meios pelos quais o poder público realiza o seu dever de proteção de direitos fundamentais é justamente o da proteção jurídico-penal dos mesmos”[12] [relativamente à proteção penal dos bens fundamentais], ao passo que, ainda segundo Sarlet, “a resposta penal para condutas ofensivas a bens jurídicos pessoais sempre tem por efeito – pelo menos em princípio – a sua proteção, não importando (neste contexto) o quão efetiva é a proteção”[13], donde o autor afirma que a proibição de insuficiência exige a tomada de medidas necessárias à proteção dos direitos fundamentais[14].
O Supremo Tribunal Federal já consagrou a compreensão da proibição de proteção deficiente no conteúdo do princípio da proporcionalidade. Com efeito, na ADIn n.º 1.800/DF, afirmou o Ministro Lewandowski que “o princípio da proporcionalidade, bem estudado pela doutrina alemã, corresponde a uma moeda de duas faces, de um lado, tem-se a proibição do excesso (übermassverbot), e, de outro, a proibição de proteção deficiente (untermassverbot)”, afirmando que esta “exige que o Estado preste proteção eficaz […] sobretudo no que respeita aos direitos de cidadania”[15]. No mesmo sentido, o TJSP, na Apelação Criminal n.º 0052878-39.2006.8.26.0050, ao afirmar que o princípio da proporcionalidade abrange “a garantia de proteção eficiente” por parte do Estado.
Nesse sentido, parafraseando Sarlet, tem-se que o Estado frustra o seu dever de proteção quando atua de modo insuficiente e, principalmente, quando deixa de atuar, hipótese esta na qual o Estado incorre em omissão inconstitucional na elaboração de legislação criminal protetiva do bem-jurídico lesado, consoante reconhecido inclusive pelo Tribunal Constitucional Alemão, por conta da “omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteção”[16] – no caso, no bem jurídico-penal e constitucional da tolerância, que garante a todos o direito de não serem ofendidos, agredidos e/ou discriminados por seu mero modo de ser – sem falar no evidente direito à vida, que garante o direito a não ser assassinado, o direito à integridade física, que garante o direito a não ser agredido, e o direito ao respeito à honra e à dignidade, que garante(m) o direito a não ser ofendido por ofensas individuais ou coletivas, o que (inacreditavelmente) precisa ser afirmado ante o notoriamente elevado número de assassinatos, agressões e ofensas de pessoas por sua mera orientação sexual não-heterossexual ou sua mera identidade de gênero dissonante de seu sexo biológico…
Diretamente relacionado, mas independente e constante do caput do art. 5º da CF/88, temos o direito fundamental à segurança, também bem jurídico-constitucional e bem jurídico-penal. Na definição de Alessandro Baratta, de um ponto de vista jurídico e psicológico, “seguros podem e devem ser os sujeitos de direitos fundamentais, em particular daqueles direitos universais, que correspondem não somente às pessoas físicas possuidoras dos direitos dos cidadãos do Estado no qual se encontram, senão todas aquelas que estejam no território de um Estado, de uma cidade, em um bairro, em qualquer lugar público ou privado”, donde “A segurança deve referir-se, na realidade, ao desfrute e à proteção efetiva daqueles direitos, relativamente a qualquer agressão ou descumprimento por parte de outras pessoas físicas que exercitem poderes de fato ou de direito em um espaço territorial”[17]. Afinal, a garantia de segurança é a promessa central do Estado para justificar o contrato social justificador da teoria da Constituição (e mesmo da legislação em geral)[18], donde deve ser garantida também à população LGBT, o que até o momento não ocorre por conta da proteção insuficiente do Estado Brasileiro à mesma.
O Supremo Tribunal Federal também já reconheceu expressamente o direito fundamental à segurança pública e o dever estatal de promovê-la eficazmente. Com efeito, na ADIn n.º 3.112/DF, afirmou o relator, Ministro Lewandowski, a existência do “direito dos cidadãos à segurança pública e o correspondente dever estatal de promove-la eficazmente”, bem como que “a garantia da segurança pública passou a constituir uma das atribuições prioritárias do Estado brasileiro, cujo enfoque há de ser necessariamente nacional”[19]. No mesmo julgamento, o Ministro Gilmar Mendes[20] bem explicitou tais questões ao afirmar que “Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Utilizando-se da expressão de Canaris, pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot), mas também podem ser traduzidos como proibições de proteção deficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbot). […] No primeiro caso, o princípio da proporcionalidade funciona como parâmetro de aferição da constitucionalidade das intervenções nos direitos fundamentais como proibições de intervenção. No segundo, a consideração dos direitos fundamentais como imperativos de tutela (Canaris) imprime ao princípio da proporcionalidade uma medida diferenciada. O ato não será adequado quando não proteja o direito fundamental de maneira ótima; não será necessário na hipótese de existirem medidas alternativas que favoreçam ainda mais a realização do direito fundamental; e violará o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito se o grau de satisfação do fim legislativo é inferior ao grau em que não se realiza o direito fundamental de proteção”. Nesse sentido, o Ministro Gilmar Mendes bem explicita as subdivisões para, assim, destacar a existência de um direito fundamental à proteção estatal, senão vejamos:
Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção:
a) dever de proibição (Verbotspflicht), consistente no dever de proibir uma determinada conduta;
b) dever de segurança (Sicherheitspflicht), que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas;
c) dever de evitar riscos (Risikopflicht), que autoriza o Estado a atuar com o objetivo de evitar riscos para o cidadão em geral mediante adoção de medidas de proteção ou de prevenção especialmente em relação ao desenvolvimento técnico ou tecnológico.
Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer este direito, enfatizando que a não-observância de um dever de proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2º, II, da Lei Fundamental.
Em suma, o Município de São Paulo tem o DEVER de garantir uma PROTEÇÃO EFICIENTE aos cidadãos que nele residem e, portanto, às minorias e grupos vulneráveis vítimas de discriminações sociais, como é o caso da população LGBT. Nesse sentido, perfeitamente possível e mesmo obrigatório que o Município, possuidor de um Centro de Combate à Discriminação, garanta às vítimas de tal discriminação o apoio jurídico por intermédio de advogado, principalmente quando a vítima se encontre em situação de vulnerabilidade que lhe impeça de contratar advogado – que é exatamente o perfil das vítimas que procuram o CCH/PMSP: pessoas em situação de vulnerabilidade social e, muitas vezes, familiar e financeira, que não têm condições de contratar advogado.
Nem se diga que “somente” a Defensoria Pública teria a incumbência de garantir um tal apoio jurídico às vítimas sem condições. A uma porque é fato notório que a Defensoria Pública não tem a estrutura necessária para fornecer um tal apoio, já que conta com poucas centenas de Defensores(as) Públicos(as) para atender o Estado inteiro, demora meses para ingressar com as ações e medidas judiciais em favor de seus(uas) beneficiários(as) e não tem condições de fazer um acompanhamento preventivo que tire todas as dúvidas de tais usuários(as) de tal serviço. Roga-se que não se interprete mal o que se está aqui a dizer, pois Defensores(as) Públicos(as) fazem tudo que lhes é possível dentro de suas possibilidades estruturais vigentes, justamente pelo citado fato notório de que a Defensoria Pública não tem um número de defensores(as) necessário para atender todo o Estado de maneira eficiente. Não se pode adotar como teoria jurídica uma espécie de “cada um com seu problema” para o Município dizer que não iria atuar porque isso seria de competência da Defensoria Pública estadual…
Nem se invoque o Convênio da OAB/SP com o Estado de São Paulo de forma parecida, a uma pela precariedade estrutural do mesmo e a outra pelos notórios problemas que tal sistema enfrenta, inclusive a polêmica recente com a Defensoria Pública sobre se ele continuará a existir ou não. Até porque se tratam de advogados sem nenhuma relação institucional com a OAB/SP, o que inviabiliza um diálogo institucional efetivo na capacitação e sensibilização dos mesmos para o tema da Diversidade Sexual, ao contrário do que acontece com a Defensoria Pública, que já possui, inclusive, um Núcleo de Combate à Discriminação, ao Racismo e ao Preconceito que atende os casos de discriminações homofóbica e transfóbica (entre outras), o qual, contudo, como dito, é insuficiente pela estrutura ainda notoriamente deficiente da Defensoria Pública.
De qualquer forma, como supra demonstrado, a interpretação sistemática dos artigos 1º, I e II, e 7º, I e VI, do Decreto Municipal Paulistano n.º 52.652/11 garante como legítima a garantia de advogado pelo Centro de Combate à Homofobia da Prefeitura de São Paulo para representar as vítimas de homofobia e transfobia nos processos administrativos da Lei Estadual n.º 10.948/01. Entendimento em sentido contrário implicará em um resquício de noção de um Estado Liberal, que não intervém para proteger os seus cidadãos, algo já há muito superado tanto pela noção de Estado Social quanto, especialmente, pela noção de Estado Democrático de Direito, que demanda, neste caso, pela atuação do Município naquilo que tem a seu alcance, que é, entre outras medidas, a garantia de advogado a pessoas LGBT necessitadas. Que se adote o critério de carência financeira da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (renda familiar de até três salários-mínimos), preferencialmente com o acréscimo de uma situação de hipossuficiência familiar nos casos de pessoas LGBT que não têm apoio financeiro de suas famílias; tenha-se em mente a situação de pouca estrutura de advogados(as) do CCH/PMSP na questão do tempo necessário para a efetiva atuação do mesmo, como ocorre hoje no que tange à Defensoria Pública; que se regulamente o tema da forma que se julgar mais conveniente (desde que não se criem exigências burocráticas que, na prática, desestimulem o apoio, evidentemente); mas garanta-se o apoio jurídico em questão.
Só uma concepção de Direito Administrativo de Século XIX (ou anterior), puramente liberal e descompromissada com a proteção de seus cidadãos, pode se mostrar contrária à garantia de advogado para representar vítimas de discriminações que residam no Município… (critério de residência por ser este o âmbito de atuação do ente federativo em questão)
Destaque-se apenas que essa posição pode ser assumida por Vossa Senhoria ainda que o parecer aqui combatido já tenha sido acatado pela Nobre Secretária que lhe antecedeu (na então Secretaria Municipal de Participação e Parceria), mediante reconsideração de tal decisão, por força do princípio da impessoalidade da Administração Pública, constante do artigo 37 da Constituição Federal, tendo em vista que Vossa Senhoria é o titular da respectiva pasta (agora, com o nome, mais apropriado, de Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania), ante a prerrogativa da Administração Pública de rever seus próprios atos, inclusive de ofício. Por outro lado, considerando não se tratar de parecer vinculante, pode Vossa Senhoria perfeitamente dele discordar, apresentando as razões jurídicas (e políticas) para tanto, o que se entende que este parecer fornece à saciedade, tanto do ponto de vista jurídico quanto político: politicamente, é necessária uma postura que garanta um enfrentamento/combate efetivo da homofobia e da transfobia, o que não é feito caso se adote uma postura contrária à aqui defendida, por isto diminuir o âmbito de atuação do CCH/PMSP.
Pode-se indagar o motivo de se ter focado aqui nos casos relativos à referida lei estadual, o que se justifica pelo seguinte. Esta é uma legislação estadual antidiscriminatória que visa punir especificamente atos discriminatórios motivados na orientação sexual e na identidade de gênero da vítima, que é exatamente a função do CCH/PMSP e é, portanto, aquele que deve ser seu foco principal, enfrentar e combater a homofobia e a transfobia. Claro, isto pode ser feito também por ações judiciais que visem a punição do ato homofóbico ou transfóbico, como as ações de indenização por danos morais e as ações penais privadas de injúria e difamação, por exemplo. Entende-se que, como o CCH/PMSP não tem previsão de ter uma equipe ampla de advogados para garantir um tal atendimento amplo à população paulistana necessitada em geral, o que seria absolutamente legítimo, ele deve utilizar os dois advogados atualmente previstos no seu decreto instituidor para garantir, primordialmente, a efetivação da legislação estadual (e eventual legislação municipal que venha a ser criada) que apta a punir especificamente a homofobia e a transfobia. Se o CCH/PMSP vier a ter sua estrutura alterada para possibilitar um tal atendimento jurídico amplo e generalizado, na esfera administrativa e judicial, isso será absolutamente legítimo e válido do ponto de vista jurídico e, principalmente, político, mas, até lá, considerando que sequer os dois cargos de advogados(as) específicos do CCH/PMSP foram preenchidos desde sua criação, pode-se garantir prioridade à representação das vítimas de homofobia e transfobia nos processos administrativos da Lei Estadual n.º 10.948/01: até porque uma tal atuação serviria como um complemento absolutamente necessário à atuação da Defensoria Pública por esta, como visto, não ter condições estruturais de garantir um apoio eficiente à população do Estado nas suas condições atuais.
Se, no futuro, a Defensoria Pública tiver a estrutura necessária para atender eficientemente a população do Município, seria defensável estabelecer-se um convênio pelo qual somente ela, e não a Prefeitura, garantisse o apoio jurídico aqui debatido. Contudo, estamos muito longe deste dia, lamentavelmente. Assim, atualmente é simplesmente indefensável, insensível e inconstitucional se relegar todo esse serviço à Defensoria Pública no que tange ao Município de São Paulo. No mínimo pela teoria da situação ainda constitucional, consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no que tange justamente à Defensoria Pública: embora fosse inconstitucional, após a Constituição Federal de 1988, que a Procuradoria-Geral do Estado realizasse os serviços da Defensoria Pública, o fato desta ainda não ter sido criada justificava que essa situação, embora em tese inconstitucional, fosse tida como constitucional enquanto a Defensoria não fosse criada (STF, RE 341.717-SP e RE 135.328-SP), raciocínio este que pode ser aplicado aqui enquanto a Defensoria não obtém a estrutura necessária para garantir uma apoio jurídico célere às pessoas necessitadas em geral.
Mas que fique claro: ao menos em casos urgentes que cheguem a seu conhecimento, como para evitar perecimento de direitos, nada impede que o(a) advogado(a) do CCH/PMSP ingresse na Justiça para tomar a atitude urgente em questão para, em seguida, repassar o caso à Defensoria Pública ou a advogado que posteriormente represente a vítima. O importante é garantir a plena cidadania da população LGBT, sem limitações arbitrárias à atuação do CCH/PMSP.
Sobre o tema, cabe citar a paradigmática fala do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, do Supremo Tribunal Federal, quando de sua participação na Audiência Pública realizada pelo Ministério Público Federal, no dia 23 de fevereiro de 2013, relativo à advocacia pro bono. Em sua fala, Sua Excelência afirmou categoricamente a possibilidade de Prefeituras garantirem assistência jurídica aos cidadãos que residem em seu âmbito territorial, senão vejamos:
[…] Como diz a Profª. Flavia [Piovesan], o elemento central do Estado de Direito é a ideia de atuação da Justiça e o acesso à Justiça. É preciso então que flexibilizemos e entendamos de forma ampla aquilo que o texto constitucional nos oferece, inclusive, naquilo que nos for necessário, uma linha de interpretação inclusiva, inclusive no reconhecimento de poderes implícitos, se for o caso. Tenho a impressão, e já falei isso em outros momentos, que o Brasil tem que romper definitivamente, tendo chegado no século XXI, com uma mentalidade corporativa [aplausos], se há um defeito no nosso texto constitucional muito rico e plural, que permite interpretações extremamente interessantes, se há um defeito, talvez por essa pluralidade, foi consolidar determinadas posições corporativas, mas o defeito de hoje é essa leitura de hoje que persiste e prossegue, é preciso encerrar de vez com essa hermenêutica viciada que eu chamo de hermenêutica do interesse. Não é possível, não se justifica, não se pode dizer que uma atividade de assistência jurídica patrocinada por uma Prefeitura fere a atividade de uma Defensoria Pública que a gente sabe que não existe, são quinhentos defensores para defender toda essa massa de pessoas carentes de justiça, e quantas estão ainda em busca de justiça. […] (grifos nossos)
(fonte: https://pauloriv71.wordpress.com/2013/02/23/advocacia-pro-bono-transcricao-da-audiencia-publica-do-mpf-sp/, último acesso em 13.02.2013)
Deixar de garantir tal apoio jurídico prejudicará gravemente a população LGBT paulistana, que conta com o Centro de Combate à Homofobia da Prefeitura de São Paulo para lhe auxiliar. Se a pessoa comparecer ao CCH/PMSP e for informada que este nada poderá fazer por ela e que ela só poderia obter apoio jurídico efetivo da Defensoria Pública, isso a desestimulará a fazer valer seus direitos. É notório que isso acontece, as pessoas já se têm que investir considerável tempo para se dirigir ao CCH/PMSP e, muitas vezes, a ele comparecem encaminhadas pelo Centro de Referência da Diversidade, que mantém convênio com a Prefeitura. Se tiverem que ir a um terceiro lugar para ter seu problema resolvido, muito provavelmente muitas vítimas simplesmente desistirão de levar o caso adiante, como de fato já há quem desista por este trâmite já existente (CRD → CCH)…
Ademais, o(a) advogado(a) do CCH/PMSP, nos casos de vítimas que estão sendo atendidas pela Defensoria Pública, deve fazer uma intermediação entre a vítima e o(a) Defensor(a) Público(a), para fornecer informações à vítima, na medida em que a prática tem demonstrado que referido(a) defensor(a) não tem tempo para entrar em contato e mesmo responder a dúvidas das pessoas que atendem por força do acúmulo invencível de serviço a que estão submetidos, oriundo da falta de pessoal adequado para um fluxo mais razoável de trabalho: quem tem milhares de processos não tem como falar cotidianamente com milhares de pessoas. Logo, além da atuação direta nos casos em que as vítimas de homofobia/transfobia residentes na cidade de São Paulo prefiram o CCH/PMSP à Defensoria Pública, o(a) advogado(a) do mesmo deve garantir essa intermediação para fins de não deixar a vítima desamparada, no sentido de achar que o(a) defensor(a) não estaria lhe dando a devida atenção, o que sabemos não ser verdade, mas é a impressão que vítimas que procuraram o CCH enquanto o signatário estava presente manifestavam (quando se explicava a elas esse problema estrutural/de pessoal da Defensoria ao mesmo tempo em que se fazia essa intermediação para fornecimento de informações a elas).
Por fim, cabe destacar que se, até aqui, tratou-se da forma de atuação dos advogados do CCH/PMSP, evidentemente isso pressupõe que se cumpra o disposto no artigo 3º, inciso IV, do Decreto Municipal n.º 52.652/11 para que sejam garantidos dois advogados especificamente para o CCH (ou duas advogadas, ou ainda um advogado e uma advogada). Isso é importante ser destacado porque, desde sua criação, nunca teve ele advogado próprio: era o advogado da CADS/PMSP que também atuava perante o CCH, dividindo-se entre ambos. Foi o que aconteceu com o signatário: durante os aproximadamente dezoito meses em que prestou serviços à PMSP, atuou como assessor jurídico da CADS e como advogado do CCH, dividindo-se entre ambas as instituições. Mesmo durante o brevíssimo período em que foi contratado outro advogado para a CADS, deliberou-se que o signatário continuaria atuando em parte dos processos administrativos da CADS que ele tinha iniciado, donde essa divisão entre CADS e CCH permaneceu. Enfim, é necessário que seja cumprido o artigo 3º, inciso IV, Decreto Municipal n.º 52.652/11 e sejam contratados dois advogados especificamente para o CCH, para garantir um atendimento eficaz à população LGBT e mesmo possibilitar uma atuação preventiva do mesmo, em cumprimento aos objetivos constantes do citado decreto. Como sugestão, as duas vagas de advogados(as) poderiam ser preenchidas com um(a) civilista e um(a) criminalista, por isto atender de forma suficiente as demandas em geral das vítimas de discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero.
É necessário que se mostre vontade política para preencher as vagas de advogados(as) já normativamente previstas no artigo 3º, inciso IV, do Decreto Municipal n.º 52.652/11. Isso lamentavelmente não houve na gestão anterior, mesmo após a aprovação do decreto, donde se espera que esta nova gestão tenha uma postura diferente neste ponto – e, inclusive, para a contratação de psicólogos efetivos, já que há apenas um voluntário que comparece uma vez por semana no CCH/PMSP: é preciso preencher as duas vagas de psicólogo também previstas pelo citado decreto para se unirem às duas assistentes sociais lá existentes.
Lembre-se que o CCH/PMSP surgiu por intermédio de um convênio entre a Prefeitura de São Paulo e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, pelo qual esta transferiu recursos para aquela, sendo posteriormente assumido integralmente pela Prefeitura. Pois bem, que se faça outro convênio com transferência de recursos do Governo Federal se julgar-se necessário, mas não importa a forma: é preciso que garantir as duas vagas de advogados(as) ao CCH, para se combater esta verdadeira banalidade do mal homofóbico[21] em que vivemos, pela qual muitas pessoas se acham no “direito” de ofender, discriminar, ameaçar, agredir e mesmo matar pessoas LGBT por sua mera orientação sexual e/ou sua identidade de gênero. Deixa-se de citar/transcrever aqui notícias de agressões, ofensas e discriminações em geral a pessoas LGBT por sua mera orientação sexual e/ou identidade de gênero por isto constituir fato notório que, como tal, não precisa ser comprovado (cf. artigo 334, inciso I, do Código de Processo Civil), mas a enormidade de tais fatos e o recrudescimento da intolerância contra pessoas LGBT precisa ser enfrentada/combatida de forma efetiva pelo CCH/PMSP, o que caracteriza o princípio inspirador desta manifestação e justifica a interpretação teleológica aqui defendida sobre a correta interpretação (ou, caso se prefira, a melhor interpretação) dos artigos 1º, I e II, e 7º, I e VI, do Decreto Municipal n.º 52.652/11.
Ante o exposto, requer-se seja reconhecida a competência dos(as) advogados(as) do CCH/PMSP para representar vítimas de homofobia e/ou transfobia residentes na cidade de São Paulo (ainda que em situação de rua) nos processos administrativos da Lei Estadual n.º 10.948/01 (Lei Estadual Anti-Homofobia/Transfobia), bem como requer-se seja reconhecida sua competência para atuações judiciais excepcionais em favor de tais vítimas para evitar perecimento de direitos e demais situações caracterizáveis como urgentes para posterior remessa do caso à Defensoria Pública ou advogado(a) contratado(a) por tal vítima (conforme o caso), bem como requer-se sejam integralmente preenchidos os dois cargos de advogados(as) do CCH, consoante previsto no Decreto Municipal n.º 52.652/11. Requer-se, por fim, que além do reconhecimento das competências já explicitadas, se reconheça a competência dos(as) mesmos(as) para intermediar os contatos entre vítimas representadas pela Defensoria Pública e esta, por conta da deficiência estrutural (de pessoal) que a mesma sofre, para fins de não deixar a vítima desamparada, nos termos supra expostos.
Termos em que,
Pede e Espera Deferimento.
São Paulo, 13 de março de 2013.
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Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino
Especialista em Direito da Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo
Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual
Advogado – OAB/SP n.º 242.668
[1] É farta a doutrina sobre o tema, afirmando que a norma é fruto da interpretação do texto normativo. Cite-se, v.g., CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, e BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 6ª Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2006.
[2] Como bem diz Carlos Maximiliano: “A lei é a vontade transformada em palavras, uma força constante e vivaz, objetivada e independente do seu prolator; procura-se o sentido imanente no texto, e não o que o elaborador teve em mira. O aplicador extrai da fórmula concreta tudo o que ela pode dar implícita ou explicitamente, não só a idéia direta, clara, evidente, mas também a indireta, ligada à primeira por mera semelhança, deduzida por analogia. Eis por que se diz que – ‘a lei é mais sábia que o legislador’; ela encerra em si um infinito conteúdo de cultura; por isso também, raras vezes o respectivo autor seria o seu melhor intérprete. A própria escola tradicionalista procura compreender o elaborador da norma jurídica de modo mais profundo e amplo do que ele compreenderia a si próprio, abranger o que o mesmo realizou inconscientemente, pôs em evidência conceitos e perspectivas às quais o legislador permaneceu alheio, porém fáceis de enquadrar na fórmula concreta em que se objetivou o sentir subjetivo e restrito. […] Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-se a ele, como um produto novo; dilata e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais previdente que o seu autor. Consideram-na como ‘disposição mais ou menos imperativa, materializada num texto, a fim de realizar sob um ângulo determinado a harmonia social, objeto supremo do Direito’. Logo, ao intérprete incumbe apenas determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac potestas legis; deve ele olhar menos para o passado do que para o presente, adaptar a norma à finalidade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaboração primitiva. […] Toda prescrição legal tem provavelmente um escopo, e presume-se que a este pretenderam corresponder os autores da mesma, isto é, quiseram tornar eficiente, converter em realidade o objetivo ideado. A regra positiva deve ser entendida de modo que satisfaça aquele propósito”, donde “Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma pretende atingir em sua atuação prática”, pois “A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida”, pois “O fim inspirou o dispositivo; deve, por isso mesmo, também servir para lhe limitar o conteúdo; retifica e completa os caracteres na hipótese legal e auxilia a precisar quais as espécies que na mesma se enquadram”, na medida em que o fim “Fixa o alcance, a possibilidade prática; pois impera a presunção de que o legislador haja pretendido editar um meio razoável, e, entre os meios possíveis, escolhido o mais simples, adequado, eficaz”, na medida em que “O objetivo da norma positiva ou consuetudinária é servir a vida, regular a vida; destina-se a lei a estabelecer a ordem jurídica, a segurança do Direito. Se novos interesses despontam e se enquadram na letra expressa, cumpre adaptar o sentido do texto antigo ao fim atual”, pois “A pesquisa não fica adstrita ao objetivo primordial da regra obrigatória; descobre também o fundamento hodierno da mesma. A ratio juris é uma força viva e móvel que anima os dispositivos e os acompanha no seu desenvolvimento” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19a Edição, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, pp. 23, 25 e 124-125 – grifos nossos).
[3] Em outras palavras: a norma é a conjunção de fatos e valores (as três dimensões do Direito), donde se pode concluir pela existência da equação segundo a qual norma = fato + valor, do que se percebe que é o valor que justifica a regulamentação de determinado fato, sendo o valor, assim, o elemento relevante da análise da finalidade normativa, não o mero fato Cf. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, 27ª Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2004, pp. 64-65. Essa é a teoria tridimensional do Direito, segundo a qual há três aspectos nas normas jurídicas, a saber: (i) um aspecto fático, que engloba os fatos abarcados pela norma; (ii) um aspecto valorativo, que justifica a proteção aos fatos abarcados em virtude de um valor positivo a eles atribuído ou então justifica a condenação aos referidos fatos em virtude de um valor negativo a eles vinculado; e (iii) um aspecto normativo, que instrumentaliza em um texto normativo a proteção ou condenação legislativa aos fatos em comento. Isso significa que o Direito é uma ciência valorativa, no sentido de que protege ou reprime determinados fatos em razão da valoração a eles atribuída. Ademais, a equação norma = fato + valor é subjacente às lições de Miguel Reale. Afinal, afirma o autor que “a estrutura do Direito é tridimensional, visto como o elemento normativo, que disciplina os comportamentos individuais e coletivos, pressupõe sempre uma dada situação de fato, referida a valores determinados”, sendo preciso observar “a unidade ou a correlação essencial existente entre os aspectos fático, axiológico e prescritivo do Direito” (REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 20a Edição, 5a tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 511); ou ainda que “a tridimensionalidade específica do Direito resulta de uma apreciação inicial da correlação existente entre fato, valor e norma no interior de um processo de integração, de modo a abranger, em unidade viva, os problemas do fundamento, da vigência e da eficácia do Direito” (Ibidem, p. 515). Cite-se, ainda, o entendimento do autor no sentido de que “duas são as condições primordiais para que a correlação entre fato, valor e norma se opere de maneira unitária e concreta: uma se refere ao conceito de valor, reconhecendo-se que ele desempenha o tríplice papel de elemento constitutivo, gnoseológico e deontológico da experiência ética; a outra é relativa à implicação que existe entre o valor e a história, isto é, entre as exigências ideais e a sua projeção na circunstancialidade histórico-social como valor, dever-ser e fim. (…) / Dizemos que o valor constitui a experiência jurídica porque os bens materiais ou espirituais, construídos pelo homem através da História, são, por assim dizer, ‘cristalizações de valor’ ou ‘consubstanciações de interesses’” (Ibidem, p. 543). Ora, se a estrutura do Direito é tridimensional porque o elemento normativo supõe uma situação fática referida a valores determinados (primeira citação), isso significa que a norma é formada pela atribuição de um valor a um fato. Logo, a equação apresentada (norma = fato + valor) afigura-se correta.
[4] Com efeito, em tempos de neoconstitucionalismo, nos quais é pacífico na doutrina constitucionalista que as normas constitucionais se irradiam na interpretação de todos os enunciados normativos vigentes no país, sejam eles constitucionais (interpretação sistemática) e especialmente nos infraconstitucionais (interpretação conforme a Constituição), tendo em vista a postura invasiva da Constituição na regência da vida da sociedade em geral, inclusive com a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, afigura-se inadequado não se reconhecer que a Administração Pública não poderia atuar mediante concretização de normas constitucionais.
[5] Segundo JUNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Administrativo, 10ª Edição, Editora JusPODIVM, 2011, p. 67, “Entende-se por juridicidade a moldura jurídica com a qual deve a Administração Pública conformar os seus atos e a sua atuação. Desse modo, o dever de juridicidade é aquele que impõe à Administração Pública somente agir nos termos da ordem jurídica, de modo a compatibilizar as suas atividades com a Constituição, as leis e as normas administrativas. Cumpre esclarecer que o dever de juridicidade é mais do que o dever de legalidade. Isto porque a Administração Pública não está vinculada e sujeita apenas à lei, mas à ordem jurídica como um todo, que contempla outros parâmetros jurídicos (dever de razoabilidade, dever de proporcionalidade, dever de impessoalidade, dever de moralidade, dever de motivação, dever de respeitar os direitos do cidadão administrado etc)” (grifos nossos).
[6] PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo, 24ª Edição, São Paulo: Editora Atlas, 2011, pp. 27, 29 e 31, que, ao tratar das tendências contemporâneas do Direito Administrativo, trata como realidade do Direito Administrativo Contemporâneo o “alargamento do princípio da legalidade (para abranger, não só a lei, mas também princípios e valores)”, no sentido de “O Estado Democrático de Direito pretende vincular a lei aos ideais de justiça, ou seja, submeter o Estado não apenas à lei em sentido puramente formal, mas no Direito, abrangendo todos os valores inseridos expressa ou implicitamente na Constituição. Nesse sentido, o artigo 20, §3º, da Lei Fundamental da Alemanha, de 8-5-49, estabelece que ‘o poder legislativo está vinculado à ordem constitucional; os poderes executivo e judicial obedecem à lei e ao direito’. Ideias semelhantes foram inseridas nas Constituições espanhola e portuguesa. No Brasil, embora não se repita norma com o mesmo conteúdo, não há dúvida de que se adotou igual concepção, já a partir do preâmbulo da Constituição, rico em menção a valores como segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça. Além disso, os artigos 1º a 4º e outros dispositivos esparsos contemplam inúmeros princípios e valores, como os da dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o da erradicação da pobreza, o da economicidade, entre outros. Todos esses princípios e valores são dirigidos aos três Poderes do Estado: a lei que os contrarie será inconstitucional; a discricionariedade administrativa está limitada pelos mesmos, o que significa a ampliação do controle judicial, que deverá abranger a validade dos atos administrativos não só diante da lei, mas também perante ao Direito, no sentido assinalado. Vale dizer que, hoje, o princípio da legalidade tem uma abrangência muito maior porque exige submissão ao Direito”, donde, “Com o Estado Democrático de Direito, conforme assinalado, a legalidade passou a significar a sujeição ao Direito (lei, valores, princípios)” (grifos nossos).
[7] NETO, Diogo de Figueiredo Camargo. Curso de Direito Administrativo, 13ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, pp. 213-214, “A palavra legalidade é aqui tomada em seu sentido amplo, como sinônima de juridicidade, envolvendo, portanto, a legalidade estrita, a legitimidade e a licitude […] O princípio da legalidade, que já havia sido conceituado em seu aspecto objetivo como sujeição do agir à lei, se reapresenta, agora, em seu aspecto subjetivo, como garantia da supremacia do interesse juridicamente protegido”. Tamanha é a aceitação da juridicidade constitucional como parâmetro de ação da Administração Pública que o citado autor, em edição posterior de sua obra, passou deixou de chamar o seu “Capítulo X” objeto de tal transcrição de “Controle de Legalidade” para nominá-lo de “Controle de Juridicidade”, igualmente alterando o primeiro tópico de “Princípio da Legalidade” para “Princípio da Juridicidade”, afirmando que “O princípio da juridicidade, assim integrado pela legalidade, pela legitimidade e pela licitude, se dirige a atender à mais importante finalidade do Direito Administrativo, que por si só o justificaria: a proteção das liberdades e dos direitos dos administrados, seguindo-se em importância, a ordenação das atividades juridicamente relevantes da Administração” (NETO, Op. Cit., 20ª Edição, p. 248), em obra da qual extrai-se o seguinte: “O princípio da juridicidade
corresponde ao que se enunciava como um ‘princípio da legalidade’, se tomado em sentido amplo, ou seja, não se restringindo à mera submissão à lei, como produto das fontes legislativas, mas de reverência a toda a ordem jurídica”.
[8] Cf., v.g., NETO, Diogo de Figueiredo Camargo. Op. Cit., 13ª Edição, p. 213, para quem “A mais importante finalidade do Direito Administrativo, e que por si só o justificaria, é a proteção das liberdades e dos direitos dos administrados. Para esse efeito, a Administração, como braço executivo do Estado, tem o seu poder contido por duas técnicas juspolíticas: a limitação e o controle”.
[9] Segundo Dirley da Cunha Junior, “se para o particular prevalece a liberdade/faculdade de ação, para a Administração existe um dever de ação, sempre que a ordem jurídica lhe impõe uma providência ou ela se mostre necessária em face das circunstâncias administrativas. Não pode, destarte, a Administração Pública deixar de praticar ato de sua competência, sob pena de responder por sua omissão na via administrativa ou judicial. É que, na omissão do gestor ou silêncio da Administração Pública que se abstém de seu dever jurídico de agir, pode o cidadão-administrado manejar os remédios jurídicos disponíveis para obter o ato ou a providência omitida, ou para ser indenizado do dano causado pela omissão do Estado. Nesse sentido se pacificou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [STF, RE n.º 121.140/RJ] e do Superior Tribunal de Justiça [STJ, AgRg n.º 822.764/MG]” (JUNIOR, Op. Cit., p. 66).
[10] SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br, p. 21. Acesso em 05/02/12.
[11] SARLET, Op. Cit., p. 22.
[12] SARLET, Op. Cit., p. 23.
[13] SARLET, Op. Cit., p. 23.
[14] SARLET, Op. Cit., p. 34.
[15] STF, ADIn n.º 1.800/DF, DJe de 27/09/07. Como se tratava de ADIn contra a gratuidade de emolumentos fornecida aos comprovadamente pobres, afirmou o Ministro Lewandowski que a proibição de proteção deficiente “exige que o Estado preste proteção eficaz aos economicamente hipossuficientes, sobretudo no que respeita aos direitos de cidadania”. Contudo, parece evidente que o Ministro apenas aplicou referido princípio à hipótese do caso concreto ao citar os “economicamente hipossuficientes”, sem que isso signifique que a proibição de insuficiência se limite a tal hipótese, razão pela qual, no corpo do texto desta ação, suprimimos esta expressão para deixar a enunciação de Sua Excelência de maneira ampla, condizente com o conteúdo citado do referido princípio.
[16] SARLET, Op. Cit., p. 25. No original (relativamente ao trecho não-transcrito): “o Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais”. Sobre o Tribunal Constitucional Alemão, Sarlet ressalta que isso foi reconhecido quando da discussão da descriminalização do aborto, quando, “em maio de 1993, considerou que o legislador, ao implementar um dever de prestação que lhe foi imposto pela Constituição (especialmente no âmbito dos deveres de proteção) encontra-se vinculado pela proibição de insuficiência, de tal sorte que os níveis de proteção (portanto, as medidas estabelecidas pelo legislador) deveriam ser suficientes para assegurar um padrão mínimo (adequado e eficaz) de proteção constitucionalmente exigido” (Loc. Cit.). O autor cita, ainda, Canaris, para quem a proibição de insuficiência proíbe a “omissão por parte do Estado em assegurar a proteção de um bem fundamental ou mesmo de uma atuação insuficiente para assegurar de modo minimamente eficaz esta proteção” (CANARIS, apud SARLET, Op.Cit.,p. 28).
[17] BARATTA, Alessandro. La política criminal y el derecho penal de la constituición. In: FRANCO, Alberto Silva e NUCCI, Guilherme de Souza (orgs). Doutrinas Essenciais de Direito Penal. Volume I, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 37. Tradução livre. Grifos nossos. Tal garantia de direito à segurança e à fruição de todos os direitos fundamentais é evidentemente invocada no sentido de sua garantia a toda a população, sem nenhuma “seletividade” que exclua grupos sociais marginalizados de sua fruição.
[18] BARATTA, Op. Cit., p. 46. Tradução livre.
[19] STF, ADIN n.º 3.112/DF, DJe de 25/10/07. Voto do Ministro Lewandowski, pp. 4 e 10.
[20] STF, ADIN n.º 3.112/DF, DJe de 25/10/07. Voto do Ministro Gilmar Mendes, pp. 9-10 e 11-12. G.n.
[21] Usa-se a expressão banalidade do mal em sentido equivalente (senão idêntico) àquele que lhe atribuiu Hannah Arendt em sua obra Eichmann em Jerusalém, no sentido de que o mal não é cometido por monstros desumanos, mas por pessoas “comuns”, com as quais convivemos ou poderíamos estar convivendo cotidianamente, que cometem atos violentos, desumanos e afins sem serem pessoas, por assim dizer, ontologicamente más (o que, a nosso ver, não existe), sociopatas nem nada do gênero, mas pessoas que simplesmente praticam o mal sem se conscientizarem de que estão praticando o mal.