Alguns comentários sobre decisão histórica da Suprema Corte dos EUA, que encerrou a evolução de sua jurisprudência em prol da plena cidadania homossexual. De uma decisão nefasta que disse “tudo bem” para a criminalização do sexo homoafetivo (união consensual entre adultos, maiores e capazes) em 1986 (caso Bowers vs. Hadwick), passando por uma decisão de 1996 que disse que não há um legítimo interesse estatal na proibição de quaisquer ações afirmativas em favor da população LGBT (caso Romer vs. Evans), por outra, em 2003, que revogou aquela primeira e disse (a obviedade segundo a qual) é inconstitucional criminalizar o sexo consensual entre maiores e capazes do mesmo sexo (caso Lawrence vs. Texas) e por outra que, em 2013, disse que é inconstitucional discriminar casamentos homoafetivos relativamente a heteroafetivos, invalidando parte de uma lei que dizia que os Estados que não reconheciam aquele não eram obrigados a atribuir-lhes efeitos jurídicos em seus territórios e que negava benefícios federais a eles (caso Winsor vs. United States), para culminar com esta, que reconheceu o direito ao casamento civil igualitário em todo o país (caso Obergefell vs. Hodges).
A capa do The New York Times foi muito feliz ao destacar o fundamento central da decisão: “igual dignidade”. Direito dos casais homoafetivos a uma igual dignidade relativamente àquela atribuída pelo Estado a casais heteroafetivos (e eu já fui criticado por usar essa expressão, nada como um dia após o outro…). Reconhecer uma “união civil” paralela ao casamento civil implica em reconhecer “menor dignidade” àqueles/as a quem se nega acesso ao casamento civil, por exemplo (pois nega-se o acesso por não se considerá-l@s merecedores/as ou “dign@s [o bastante]” dele). O casamento civil confere uma enormidade de direitos e é a união conjugal à qual o Estado e a sociedade conferem maior dignidade, donde é discriminatório não permiti-lo a casais do mesmo sexo (mesmo gênero). Independente do fato de o Estado não dever ser “casamentocêntrico” e não dever conferir maior dignidade ao casamento civil relativamente a outras uniões conjugais (e dever, inclusive, intervir menos na união matrimonializada e deixá-la à livre decisão de seus integrantes, atuando apenas para impedir a opressão de uns/mas por outros/as), fato é que se a lei reconhece um regime jurídico conjugal a casais heteroafetivos, deve reconhecê-lo também a casais homoafetivos (ainda mais quando a lei assume essa postura “casamentocêntrica”, mas isso é outra discussão). Aí se casa quem quiser, se quiser. É totalitário quem é contra o casamento não querer que outros se casem. Que se lute para mudar esse regime jurídico e esse “casamentocentrismo” do Direito, mas enquanto ele existir e especialmente enquanto for aquele ao qual o Estado garante mais direitos, deve ser aberto a tod@s que queiram nele ingressar.
O amor venceu! Slogan estadunidense de muito tempo, algo como “meu amor vale tanto como o seu” – e aqui há quem desmereça esse enfoque no Direito das Famílias, que não é (nada) excludente do direito ao sexo casual, diga-se de passagem. União conjugal, de um lado, liberdade sexual (mais ampla), de outro, enfoques complementares, diga-se o óbvio. Assim, aproveito para parafrasear uma das já clássicas lições da querida e caríssima Maria Berenice Dias: o afeto é uma realidade digna de tutela; e, citando uma de suas também clássicas decisões de sua época de desembargadora, “A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não a diversidade de sexo. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, em atitude manifestamente preconceituosa e discriminatória. Deixemos de lado as aparências e vejamos a essência” (TJRS, AC 70012836755, de 21.12.2005).
O choro é livre. A alegria também. É indescritível minha felicidade. Soube da decisão a caminho de Bauru (doutorado) e consegui lê-la quase inteira ao chegar lá. O Judiciário mais uma vez mostrando-se uma frutífera arena para garantia de direitos e isso em um dos Tribunais mais respeitados do mundo, o que evidentemente tem tudo para influenciar outros países (se isso é justo ou não, e não é, é outro problema). Nada como ver diversas de nossas instituições democráticas, famos@s, amig@s, conhecid@s e familiares adicionando o arco-íris em suas fotos no dia de hoje. Água nos olhos nessa hora. Uma esperança de melhores dias, especialmente quando pessoas que em nada se beneficiam da decisão o fazem. Como disse Martin Luther King, o que assusta não é o barulho dos maus, mas o silêncio dos bons – e entre ontem e hoje vimos muit@s bons(as), puramente simpatizantes, manifestando apoio a essa vitória da cidadania de casais homoafetivos. A atividade de hoje foi a de curtir as milhares (“infinitas”) fotos coloridas! Claro que ainda há muito a fazer para termos respeitada a cidadania plena da população LGBT (educação para a diversidade sexual e de gênero, criminalização da homotransfobia, lei de identidade de gênero, políticas públicas de integração e de saúde para travestis e transexuais etc) e evidentemente o casamento civil não deve ser tido como algo “mais importante” do que outras demandas. Mas sua conquista é simbólica. Reitero, gostemos ou não (e eu não gosto), o casamento (civil) tem um status social e jurídico diferenciado, visto social e juridicamente como a união conjugal mais desejada para a proteção da família: mudemos isso no futuro (supõe mudança da lei), mas é necessário garantir a igualdade de acesso a ele para quem desejar este modelo de família poder adotá-lo, o que independe de orientação sexual ou identidade de gênero. Simples assim.
Aliás, o Brasil está na vanguarda há mais tempo que os EUA no tema. Nosso Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união homoafetiva como família conjugal (união estável) com igualdade de direitos relativamente à família conjugal heteroafetiva em maio/2011 (ADPF 132 e ADI 4277), nosso Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmou o direito ao casamento civil direto (sem prévia união estável) em outubro/2011 (REsp 1.183.378/RS) (caso das queridas Katia e Leticia), em 2012 tivemos muitas decisões reafirmando o direito ao casamento civil homoafetivo e, em 2013, provocado pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) de um lado e pelo PSOL 50 – Partido Socialismo e Liberdade) e pela ARPEN-RJ (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio de Janeiro) de outro, nosso Conselho Nacional de Justiça (CNJ) impôs a todos os Cartórios de Registro Civil do país o respeito ao direito de casais homoafetivos ao casamento civil (obrigou-os a celebrá-lo). E nós comemoramos muito essas vitórias, das quais eu tive o privilégio histórico de participar (fui um dos 7 advogados/amici curiae que defenderam, em sustentação oral, a união homoafetiva no STF, fiz a sustentação oral no caso do STJ, caso iniciado e até então brilhantemente trabalhado pelo querido Gustavo Bernardes, e redigi o pedido do PSOL e da ARPEN-RJ ao CNJ pedindo a regulamentação do casamento civil homoafetivo). Após a decisão do STF, celebramos muito na Avenida Paulista (eu e amig@s militantes saindo na primeira página da Folha de São Paulo de 06.05.11, que mostrou essa celebração, capa esta imortalizada pela caríssima Laerte Coutinho em charge – que eu só vi anos depois!) e celebramos muito a vitória no CNJ, em 2013. Aparentemente precisamos divulgar melhor essas nossas vitórias/conquistas, porque síndrome de vira-latas nessa hora ninguém merece… Aplaudir a vitória estadunidense e reconhecer a influência cultural dos EUA mundo (ocidental) afora é uma coisa, outra bem diferente é deixar de conhecer e valorizar a própria história.
Então, celebremos, muito. O momento merece: a luta em prol do casamento civil igualitário mundo afora teve uma importante vitória. Saibamos ver o lado bom das coisas, inobstante sempre com espírito crítico. Notícias ruins e dificuldades temos muitas cotidianamente, aprendamos a celebrar o que merece ser celebrado.
Originalmente postado em: https://www.facebook.com/paulo.iotti/posts/861944650507217 (27.06.15)
PS: o intuito desta postagem não foi explicar e analisar criticamente os fundamentos do voto da maioria e dos votos vencidos, o que pretendo fazer futuramente. Não obstante, o argumento da igual dignidade é bastante por si mesmo. Em termos de isonomia, considerando que não há fundamento lógico-racional que justifique a discriminação das uniões homoafetivas relativamente às heteroafetivas pela mera homogeneidade de sexos em um caso e diversidade de sexos em outro, é inconstitucional o não-reconhecimento do direito de casais homoafetivos ao casamento civil. Isso justifica plenamente a decisão da Suprema Corte dos EUA (e o argumento da igual dignidade isto evidentemente abrange).