A taça das bolinhas, como ficou conhecida, foi criada em 1971 com o intuito de ser entregue ao primeiro time que fosse três vezes seguidas campeão brasileiro ou fosse campeão brasileiro por cinco vezes, alternadas entre si. Quanto ao tema, tem-se como absolutamente esdrúxula a recente decisão da CBF em deixar de reconhecer o Flamengo como campeão brasileiro de 1987 e manter, assim, referida taça com o São Paulo. Lembremos dos fatos:
No ano de 1987, a CBF informou que não iria realizar o campeonato brasileiro daquele ano, por problemas financeiros e administrativos, o que revoltou os principais clubes do país.
Em razão disso, e com o aval da CBF na pessoa de seu vice-presidente, Sr. Nabi Abi Chedid, o então presidente do São Paulo Futebol Clube foi autorizado a fundar o hoje notório Clube dos 13, nome decorrente do fato de que esta organização representar os 13 principais clubes de futebol do país de então (embora, atualmente, abarca mais de 13 clubes), com o intuito de realizar o campeonato brasileiro daquele ano, já que a CBF informou que não o realizaria. A única exigência da CBF foi que fossem incluídos outros três clubes, para melhor representação do país, o que foi cumprido pelo Clube dos 13.
Contudo, verificando o sucesso da Copa União, a CBF resolveu organizar um outro campeonato, com outros 16 clubes e alterar o regulamento da Copa União já em vigor, para criar a chamada Copa Brasil com estes novos clubes. Claramente se utilizando do famoso jeitinho brasileiro, informou ao Clube dos 13 que esta Copa União seria denominada como Módulo Verde e que o campeão e o vice-campeão deste Módulo Verde iriam ter que enfrentar o campeão e o vice-campeão desta Copa Brasil, denominado como Módulo Amarelo pela CBF, que abarcou clubes de menor tradição no campeonato brasileiro. Contudo, não houve acordo, pois os integrantes do Clube dos 13 não concordaram com esta absurda proposta de alterar as regras do campeonato após o início deste.
Lembre-se que não existia sistema de rebaixamento naquele ano, o que só começou a ser adotado a partir de 1988 por exigência da FIFA. Assim, para selecionar os 16 clubes de seu Módulo Amarelo, a CBF utilizou como critério os times que haviam participado da Copa Brasil de 1986, mas deixou de ser coerente quando excluiu a Ponte Preta/SP para incluir Vitória/BA e Sport/RE neste Módulo Amarelo. Assim, pela ausência de critérios da época, plenamente válida a arbitrária eleição do Clube dos 13 sobre os times que participariam do campeonato brasileiro (Copa União) daquele ano, pois as escolhas de times sempre foram arbitrárias até então, embora pela CBF.
Ou seja, na prática, é absolutamente correta a afirmação das pessoas em geral segundo a qual o Módulo Verde representou a Primeira Divisão do futebol brasileiro e o Módulo Amarelo a Segunda Divisão nacional.
O grande problema dessa situação foi que Flamengo/RJ e Internacional/RS, campeão e vice da Copa União (Módulo Verde) se recusaram a enfrentar Sport/RE e Guarani/SP, campeão e vice do Módulo Amarelo, aparentemente por problemas de calendário.
Em razão disso, a CBF determinou a vitória de Sport e Guarani por W.O sobre Flamengo e Internacional e, ainda, que os dois se enfrentassem para decidir quem seria o campeão brasileiro da época. Neste confronto, houve a vitória do Sport que foi, assim, declarado o campeão brasileiro de então, além do fato de que Sport e Guarani foram os representantes do Brasil na Taça Libertadores da América do ano seguinte (vagas destinadas ao campeão e ao vice-campeão nacionais, na época, pois inexistia a Copa do Brasil naquele ano).
Pois bem: a polêmica retornou no ano de 2007, quando o São Paulo Futebol Clube se sagrou campeão brasileiro pela quinta vez, oportunidade na qual lhe foi entregue a chamada Taça das Bolinhas. A polêmica ressurgiu porque, como o Flamengo foi campeão brasileiro no ano de 1992, contado o seu título da Copa União de 1987, ele passou a se considerar desde então (1992) como legítimo pentacampeão brasileiro.
Ademais, a polêmica ganhou novo capítulo com o fato do Flamengo ter se sagrado campeão brasileiro no ano de 2010, tendo agora oficialmente cinco títulos nacionais e, extra-oficialmente, obtido o sexto título, considerada sua vitória na mencionada Copa União.
Em razão disso, a CBF decidiu re-analisar o tema e, com base em um parecer jurídico (cujo teor é adiante analisado), decidiu que o campeão brasileiro de 1987 foi o Sport e que, portanto, a taça de bolinhas deve permanecer com o São Paulo Futebol Clube.
Assim, cabe indagar: a decisão da CBF foi correta?
A resposta (moral) é inequívoca: não, a decisão da CBF não foi correta. Ora, como demonstrado, a CBF não iria realizar o Campeonato Brasileiro de 1987 por motivações alegadas questões políticas e administrativas e, ainda, autorizou a criação do Clube dos 13 para que este organizasse o Campeonato Brasileiro de 1987, sendo que somente quando viu que a Copa União organizada pelo Clube dos 13 estava tendo forte sucesso popular e comercial é que ela decidiu realizar um pseudo-campeonato brasileiro, alterando o regulamento de um campeonato em vigor e com o qual ela havia concordado, designando que os times de Segunda Divisão nacional teriam que competir com os times da Primeira Divisão nacional (campeão e vice de cada) para decidir quem seria o campeão brasileiro.
Ora, como explicar racionalmente para alguém que o campeão da Primeira Divisão do campeonato nacional só poderia ser declarado campeão nacional se disputasse com o campeão da Segunda Divisão do campeonato nacional??? Isso é flagrantemente esdrúxulo e inconcebível.
Ademais, o parecer jurídico da CBF é de um simplismo que beira a má-fé, já que ignora questões fundamentais do tema. Com efeito, dito parecer se limita a afirmar que o regulamento de 1987 previa que os campeões dos Módulos Verde e Amarelo teriam que disputar um quadrangular final e que, como Flamengo e Internacional deixaram de participar deste quadrangular, teriam sido derrotados por W.O e, portanto, que o campeão brasileiro daquele ano seria o Sport.
Contudo, o parecer convenientemente ignora a questão principal da polêmica, a saber, o fato de que a CBF alterou o regulamento de um campeonato em vigor sem a concordância dos organizadores daquele campeonato, em postura flagrantemente arbitrária que contraria as mais comezinhas normas jurídicas, como o princípio da pacta sunt servanda (segundo o qual os pactos devem ser cumpridos), da segurança jurídica e da confiança legítima do cidadão nos atos estatais, como atos ratificados pela CBF.
Isso significa que é irrelevante o descumprimento deste arbitrário aditamento ao regulamento do Campeonato Brasileiro de 1987 pela CBF, pois dito “aditamento” foi realizado unilateralmente, sem a concordância da outra parte (o Clube dos 13) e, portanto, não tem nenhuma validade jurídica. É nulo de pleno Direito – nulidade absoluta, que não permite qualquer produção de efeitos jurídicos.
O fato de Sport e Guarani terem disputado a Libertadores de 1988 também não serve de argumento substancial, pois isso decorreu de nova arbitrariedade política da CBF em afronta à mais comezinha lógica segundo a qual são os times que ficam nas primeiras colocações da Primeira Divisão nacional que devem representar o país naquela competição e não times da Segunda Divisão.
Não localizei decisão judicial sobre o mérito da ação movida pelo Sport contra o Flamengo. A única decisão que localizei refere-se à legitimidade passiva da União Federal para participar daquela ação, mas não uma decisão sobre seu mérito. De qualquer forma, presumindo realmente existir decisão de mérito favorável ao Sport neste caso, tem-se que a decisão não terá sido correta, seja jurídica seja moralmente. As razões são as mesmas que se acabou de expor, mas há um grande problema: o óbice jurídico da coisa julgada material, ou seja, a decisão judicial contra a qual não cabem mais recursos.
Sobre o tema, somente a invocação da polêmica, mas difundida tese da validade da impugnação da coisa julgada inconstitucional poderia favorecer o Flamengo no seu objetivo de ser reconhecido como o legítimo campeão brasileiro do ano de 1987. Trata-se de tese polêmica que, contudo, tem forte apoio de renomados doutrinadores brasileiros e estrangeiros, inclusive do Ministro José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça, que já acolheu a referida tese. Um artigo breve, localizável na internet e que pode dar ao leitor breves noções sobre o tema encontra-se no seguinte link: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7233.
Em síntese, entende-se que a coisa julgada material pode ser desconstituída quando afrontar frontalmente a Constituição Federal, uma das normas constitucionais. Claro que a tese deve ser aceita com temperamentos, no sentido de que, analisada a questão constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, não pode se invocar a tese da coisa julgada inconstitucional por se discordar da decisão do Supremo. O que entendo que pode acontecer (e que imagino que seja aplicável ao presente caso) é que, não decididas as questões constitucionais pela decisão geradora de coisa julgada material, pode-se invocar a teoria da coisa julgada inconstitucional por meio de uma ação declaratória de nulidade de coisa julgada material, a qual não está sujeita a nenhum prazo prescricional ou decadencial, por se enquadrar na notória tese da querela nullitatis insanabilis – sendo insanável (como é) o vício de inconstitucionalidade, pode ser atacado a qualquer tempo por nova ação que obrigue o Judiciário (e, em suma, o STF) a enfrentar o tema constitucional em questão.
Digo que creio que seja aplicável ao presente caso porque se divulga que o Superior Tribunal de Justiça teria dado a decisão definitiva sobre o tema, mas como há questões constitucionais em questão (princípios constitucionais da razoabilidade, da proporcionalidade e da justiça material), teria o Supremo Tribunal Federal que enfrentar o tema. Como não foi o caso, cabível uma ação de querela nullitatis insanabilis para desconstituir a coisa julgada material em questão.
Sobre o princípio da justiça, embora não tratado pela doutrina em geral, sua noção mais basilar (e nunca questionada) significa dar a cada um o que é seu. A questão é saber, claro, o que é de quem. Não cabe invocar (como CBF e Sport alegam) a existência de atos administrativos de órgãos nacionais de desportos (antigo CBD etc) para justificar o caso, pois um ato meramente formal de cunho politiqueiro sem nenhum intuito pela veracidade dos fatos, mas mera prevalência de sua arbitrária vontade de lucros com alteração de regulamento com o campeonato já iniciado (como supra exposto).
Nesse sentido, conceitos materiais (substanciais), ou seja, a verdade real, há sempre de prevalecer sobre meras verdades formais, aquelas pautadas por meros documentos oficiais que distorcem a verdade dos fatos, como o que diz que o Sport, time de Segunda Divisão na época dos fatos, seja considerado como campeão brasileiro pelo fato de o campeão da Primeira Divisão ter se recusado a aceitar disputar uma partida marcada por conta da arbitrária e nefasta mudança de regulamento (supra exposta). Entendimento em sentido contrário afronta o princípio da razoabilidade (em seu subprincípio da racionalidade, pela flagrante ilógica e irracionalidade do entendimento aqui criticado) e ao princípio da proporcionalidade (pela evidente prevalência do direito à verdade real sobre meras verdades formais fundadas em arbitrárias vontades da CBF, de declarar como campeão brasileiro o Sport no contexto supra exposto).
São conceitos que obviamente devem ser amplamente desenvolvidos numa ação judicial de querela nullitatis insanabilis, mas que julgo válidos a tal fim.
Assim, somente aceita a tese da coisa julgada inconstitucional pelo Judiciário é que terá o Flamengo chance de ser considerado como oficialmente, pelo Estado Brasileiro, como o legítimo campeão brasileiro de 1987. É uma tese defensável, embora não conte com apoio unânime sobre sua validade, apesar do forte apoio doutrinário de renomados juristas brasileiros e estrangeiros.
Portanto, conclui-se que não há dúvida de que, moralmente, a decisão da CBF foi flagrantemente esdrúxula e, portanto, não merece qualquer respeito, cabendo ação judicial de desconstituição de coisa julgada material (querela nullitatis insanabilis) pelo Flamengo para que seja declarado como o campeão brasileiro de 1987 e, assim, o detentor da citada taça das bolinhas.
De qualquer forma, é de se lamentar essa situação, pela qual politicagens de quinta categoria da CBF, no ano de 1987, fazem com que um time deixe de ser considerado oficialmente como o legítimo campeão brasileiro do ano de 1987, o que ele efetivamente é, pelas razões supra expostas.
Notas Bibligráficas:
Íntegra do Parecer da CBF:
Crise, revolução e traição: