O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual recorreu ao Procurador-Geral da Justiça Desportiva para que ele reexamine a denúncia feita pelo grupo contra manifestações homofóbicas realizadas pela torcida do Corinthians em jogo do Campeonato Brasileiro de Futebol.
Na denúncia, o GADvS demonstrou que o canto “oooohhhhhhhh, biiiiii-chaaaaa”, manifestado pela torcida do Corinthians sempre que o goleiro do time adversário bate o tiro de meta, é evidentemente homofóbico, na medida em que imputa a homossexualidade a alguém com o intuito de ofendê-lo, em um claro menosprezo da homossexualidade relativamente à heterossexualidade, claramente imputando ao homem gay uma “menor masculinidade” que ao homem heterossexual.
Em seu parecer, o Procurador da Justiça Desportiva entendeu que o grupo não teria legitimidade para apresentar a denúncia e, no mérito, entendeu que não estaria caracterizada “intenção de atingir a vítima de forma discriminatória, desdenhosa ou ultrajante”, por entender que “A afirmação do Autor de que a homossexualidade foi atribuída ao goleiro de forma pejorativa, merece prova contundente, por demais subjetiva. Na verdade, tudo indica uma espécie de manifestação de má educação da torcida, um usual e reprovável xingamento, costumeiro no mundo do futebol, comportamento que não se enquadra no tipo em destaque na Notícia” (sic).
Em razão disso, com base no artigo 74, §2º, do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que afirma que “Caso o procurador designado para avaliar a notícia de infração opine por seu arquivamento, poderá o interessado requerer manifestação do Procurador-Geral, no prazo de três dias, para reexame da matéria”, o GADvS apresentou referido pedido de reanálise do feito ao Procurador-Geral da Justiça Desportiva.
Em sua nova manifestação, também assinada por seu diretor-presidente, Paulo Iotti, o grupo argumenta que “É incompreensível a afirmação de que o grito ‘oooohhhhhh, biiiiichaaaaaa’ não seria homofóbico ou que, nas palavras do Procurador, não teria sido caracterizada a ‘intenção de atingir a vítima de forma discriminatória, desdenhosa ou ultrajante’”, pois “considerando que é evidente que a imputação de homossexualidade, pelo termo “bicha”, notoriamente pejorativo, não teve a intenção de elogiar o goleiro em questão e que era evidentemente usado em contexto de provocação, fica evidente o intuito de desdenhar ou ultrajar, e mesmo de discriminar, dos referidos gritos da torcida corinthiana”. Assim, concluiu que “Como é evidente que não se tratou de manifestação elogiosa, mas de manifestação que visou provocar o goleiro em questão mediante imputação de homossexualidade a ele, sendo inegável que isso se deu pelo menosprezo à homossexualidade relativamente à heterossexualidade, como se homens gays fossem “menos masculinos” que homens heterossexuais, resta evidente o caráter preconceituoso de dita manifestação, a ensejar a incidência do art. 243-G do CBJD ao caso concreto”.
Transcreveu-se, ainda, manifestação do Conselho Nacional para Prevenir a Discriminação (CONAPRED), do México, que se manifestou sobre caso análogo, de gritos de “oooooooooooohhhhhhhhhhh, puuuuuuuuuuu-tooooooooooooo”, da torcida da seleção mexicana no jogo da segunda rodada da fase de grupos da Copa do Mundo de futebol, contra o Brasil (grito este, aliás, que é a origem do grito da torcida corinthiana – “puto” é um termo pejorativo que, traduzido, equivale ao igualmente pejorativo termo “bicha”). Afirmou o CONAPRED/MEX[1] que “O grito de ‘bicha’ [puto] é expressão de desprezo, de repúdio [rechazo]. Não é uma descrição nem uma expressão neutra; é uma qualificação negativa, é um estigma, é uma desvalorização. Equipara a condição homossexual à covardia, com o erro, é uma forma de equiparar os rivais com as mulheres, uma forma de ridicularizá-las em um espaço desportivo que sempre foi concebido como quase exclusivamente masculino”. Muito embora a FIFA tenha arquivado o Inquérito contra o México, o GADvS critica tal decisão e afirma que essa manifestação do CONAPRED/MEX justifica o reconhecimento da homofobia no caso concreto.
No mesmo sentido, reiterou-se a posição do blogueiro Leonardo Sakamoto[2] (transcrita na denúncia original), no sentido de que “É claro que as torcidas organizadas (sic) de futebol quando entoam coros chamando determinados jogadores de ‘bicha’, que é um termo depreciativo, têm o intuito de transformar uma orientação sexual em xingamento. Reforçam, dessa forma, que ser ‘bicha’ é ser ruim, ser frouxo, medroso, incapaz e tantos outros elementos acrescidos ao significado falsamente aos gays ao longo do tempo. Nesse caso, o uso da expressão não está atacando apenas o jogador (independentemente da orientação sexual do esportista), mas toda a coletividade, pois reforça preconceitos e questiona a dignidade de determinado grupo. Fazendo um paralelo simples: um estádio inteiro gritando que um jogador negro é ‘negro’’ não é simples observação da realidade, mas quer passar um recado cuja intenção não é das melhores. Assume uma conotação diferente do significa original da palavra, com um significado bem distante de gritar que um jogador branco é ‘branco’. Pois sabemos bem que a sociedade dá pesos diferentes a negros e brancos e que o racismo ainda grassa por aqui. Nesse sentido, ataques coletivos deveriam ser analisados com rigor pela Justiça, aplicando punições didáticas para o clube da torcida em questão” (grifos do GADvS).
Para a íntegra da nova manifestação do GADvS, que vem logo em seguida da denúncia inicial (ambas antecedidas de um histórico da atuação do GADvS no Campeonato Paulista e no Campeonato Brasileiro de Futebol de 2014), vide: https://pauloriv71.wordpress.com/2014/04/06/gadvs-oficia-tjdsp-contra-homofobia-em-jogo-corinthians-x-sao-paulo/ (acesso em 02.07.2014).
Aguardávamos posicionamento distinto do Procurador-Geral da Justiça Desportiva[3], que tivesse melhor sensibilidade para reconhecer a inegável homofobia da imputação da homossexualidade a alguém com intuito pejorativo/ofensivo, pois não se pode tolerar que o futebol abarca qualquer forma de discriminação, devendo, portanto, a homofobia ser devidamente punida, pois é incoerente punir o racismo negrofóbico e não se punir o racismo homofóbico – entendido o racismo social como qualquer ideologia que pregue a inferioridade de um grupo relativamente a outro, como entendeu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus 82.424/RS, quando afirmou que o antissemitismo (a discriminação contra judeus) é espécie do gênero racismo.
Contudo, lamentavelmente, no dia 19.08.14 recebi e-mail do STJD comunicando decisão contrária do Procurador-Geral da Justiça Desportiva, o qual se limitou a, laconicamente, dizer que ratificava o parecer anterior, sem tecer uma única consideração sobre as razões do “pedido de revisão” (espécie de “recurso”) apresentado a ele, nos termos do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). Absolutamente lamentável essa tolerância com a homofobia no futebol, já que é indefensável dizer que não haveria homofobia nas citadas manifestações, ante o supra exposto. Enfim, pretendo em breve entrar na Justiça Comum para “reverter” tal decisão da Justiça Desportiva, já que esgotada a via administrativa desta, como exige a Constituição Federal para ingresso na Justiça Comum. Logo, a luta continua(rá).
[1] Cf. http://www.milenio.com/politica/puto-mundial_y_puto-tri_puto-conapred_puto-disciminacion_gritar_puto-grito_de_puto_jugadopres_de_futbol-puto_y_estadios_0_320368362.html (último acesso em 01.07.14).
[2] Cf. http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2014/04/06/por-que-dizer-que-alguem-e-gay-ou-lesbica-e-encarado-como-xingamento/(acesso em 06.04.14).
[3] O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), em seu artigo 74, §1º, afirma que cabe à Procuradoria de Justiça Desportiva “avaliar a conveniência de promover a denúncia a partir da notificação de infração” (feita, neste caso, pelo GADvS). Contudo, o §2º do mesmo dispositivo legal afirma que “Caso o procurador designado para avaliar a notícia de infração opine por seu arquivamento, poderá o interessado requerer manifestação do Procurador-Geral, no prazo de três dias, para reexame da matéria”. Por isso se fez o “recurso” (tecnicamente, o “pedido de reexame”) ao Procurador-Geral da Justiça Desportiva.