III Encontro Estadual da Diversidade Sexual da OAB/SP

Segue a transcrição que fiz do III Encontro Estadual de Diversidade Sexual da OAB/SP, realizado no dia 05 de abril de 2014. Adorei todas as palestras: fiquei feliz de ver pela primeira vez uma fala mais aprofundada do Prof. José Reinaldo de Lima Lopes e do Prof. Roberto Dias sobre o tema da diversidade sexual, o primeiro que já conhecia por alguns diálogos no GEDS – Grupo de Estudos sobre Diversidade Sexual da Faculdade de Direito da USP, e o segundo meu caríssimo professor da Especialização em Direito Constitucional da PUC/SP. As palestras foram muito ricas: as deles, bem como as do Prof. Sérgio Carrara e do caríssimo Prof. Dimitri Sales, ricas em subsídios teóricos sobre os temas da diversidade sexual; a da Dra. Luiza Eluf, com menção ao histórico da nefasta exclusão dos crimes específicos de homofobia (e transfobia) do Projeto de Novo Código Penal por parte do Senado Federal. Como digito rapidamente, sem ser taquígrafo, trata-se de transcrição quase literal, embora haja algumas paráfrases quando não foi possível acompanhar literalmente a fala em questão. Trechos entre colchetes, em itálico, são comentários meus (bem poucos, os principais referem-se às respostas às duas últimas perguntas, após o término das palestras; sendo que as considerações e a pergunta que eu fiz neste momento eu evidentemente digitei posteriormente, de memória). Evidentemente, os destaques e notas de rodapé são de minha responsabilidade.

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05.04.14

 

III Encontro Estadual de Diversidade Sexual da OAB/SP

 

Dra. Adriana Galvão

É um prazer abrirmos novamente este encontro, em sua terceira edição. No primeiro encontro eu estava grávida. Sempre tentei ensinar a ele a palavra respeito, que ele já fala. Tentarei faze-lo entender isso, indispensável ao tema da diversidade sexual.

[agradecimentos]

A Heloisa Gama, representando a Secretária de Justiça, é uma importante aliada no convenio que temos com a OAB (para capacitação de advogados para atender o tema da diversidade sexual).

Encaminhamos ao Conselho Federal da OAB ofício solicitando que, na carteira de advogada dela, conste o nome social de Marcia Rocha, integrante travesti da Comissão de Diversidade Sexual da OABSP, única comissão que tem uma travesti nomeada à Comissão de Diversidade Sexual.

Não poderíamos deixar de fazer referencia, nesse III Encontro, ao nosso falecido colega, Assis Jr. Hoje faremos uma justa homenagem póstuma e para lembrar as suas ações. Ele tinha acabado de defender sua dissertação de mestrado na ITE de Bauru. Estamos felizes hoje por termos o privilégio de publicar a dissertação dele. Fez uma grande história na OABSP, aos seus 29 anos. Declaro aberto este III Encontro da Diversidade Sexual em nome do Assis, pois tenho certeza de que, onde ele estiver, ele está conosco.

Convidamos o Dr. Dimitri Sales a fazer o lançamento da obra-dissertação do Dr. Assis Jr.

 

Dimitri Sales

O livro está sendo lançado hoje. Foi a dissertação de mestrado de Assis, defendida em 18.11.13. Era comprometido com o conhecimento e com a transformação social. Lançar o livro é semear as ideias de Assis para que possa semear no país. É emocionante poder entregar um produto em defesa dos direitos humanos da diversidade sexual. Assis era um grande amigo. Escrevi uma carta a ele (leitura da carta).

 

Heloisa Gama

A responsabilidade que todos nós temos é enorme. Pensava o que mudou do último encontro para este. Tantas coisas ruins aconteceram de lá para cá, como o PLC 122 ter sido praticamente enterrado ao ser incluído na discussão do novo código penal, o aumento da violência Brasil afora, em todos os lugares, com várias mortes de LGBTs, não há uma semana que não tenhamos notícia de um assassinato, seja nas capitais, no interior etc. Acho que todos nós, operadores do Direito ou não, cidadãos ou cidadãs, somos pessoas que lutamos pelos direitos humanos, acreditamos em todas as formas de amor, que a convivência e inclusão social são possíveis. Acho que diante do quadro que temos no Legislativo federal, a responsabilidade de Executivo, Judiciário é grande para garantia de direitos da população LGBT aumenta ainda mais.

Tive três ações com Assis em Bauru. Palestra para a Polícia Civil de Bauru, na qual ele foi fantástico, em Barretos para uma palestra, sempre provocativo o Assis, foi com um sapato de salto alto, mostrando que isso não o tornava diferente, uma provocação muito interessante e diferente, e em dezembro no Encontro das Comissões de Diversidade Sexual das OABs, em Bauru. Era um jovem com quem tivemos um contato muito rápido, mas de atuação muito forte e ativa, nossa responsabilidade aumenta muito. Quero manter contato com a Comissão de Diversidade de Bauru para mantermos o trabalho dele. A luta continua. Temos um caminho muito grande a percorrer, mas vamos conseguir enfrentar a homofobia e a transfobia que tanto assolam esse país que não sabe ainda lidar com as diferenças e ter claro que a sociedade é plural.

 

Mãe de Assis

[Em agradecimento emocionado, pediu que continuemos a luta de sei filho pelos direitos da diversidade sexual].

 

Dr. Umberto

Registro a satisfação de estar aqui, nesta mesa. Faço uma reflexão. Embora tenhamos tido muitos avanços, ainda encontramos uma hipocrisia muito grande nos setores de nossa sociedade, como instituições, a Parada LGBT na Avenida Paulista começou com um objetivo, uma ideia, de reivindicar direitos, e hoje o que vemos é um grande comércio que, a meu ver, fugiu da sua essência, que é reivindicar seus direitos. Reflitamos também sobre a passagem que a Rede Globo mostrou que, se parece banal, podemos pensar que os lucros que ela teve com essa polêmica [do “beijo gay”], mostra que não houve favor nenhum por parte dela. Trago com conhecimento de causa, quando uma pessoa que tenha diversidade sexual diferenciada, a primeira coisa que acontece ela é ridicularizada, menosprezada, e se entrar no sistema prisional, aí a coisa se agrava. É subjugada, explorada e muitas vezes moeda de troca em nossa sistema. Isso deve ser enquadrado, a sociedade camufla, pois todo nosso sistema está caótico, mas traz uma situação que o Estado de São Paulo se envergonha.

À família de Assis, digo que a luta continua. Esse Congresso é em homenagem a ele. Tragamos argumentos jurídicos para que essa sociedade hipócrita mude seu conceito, com a ponta de lança de todas as revoluções, que é a advocacia. Bom congresso.

 

Direitos Sexuais e Direitos Humanos.

Desafios à Defesa da Diversidade Sexual.

(Prof. Jose Reinaldo de Lima Lopes)

É um prazer falar para um conjunto de colegas interessados, militantes. Particularmente interessante ver no caso de Assis e outros que uma luta que começou décadas atrás continua.

Tenho três ideias a tratar aqui. Numa semana de cinquenta anos da Ditadura, fazer uma exposição cuja ideia principal é a seguinte: a luta pelos direitos sexuais é intrínseca à democracia. São as sociedades não democráticas, como vemos em Uganda e Rússia, as que negam direitos a LGBTs. Essa luta é intrínseca, e depende de um ambiente institucional minimamente democrático. Quem luta pelos direitos sexuais necessariamente luta pela democracia, e em geral quem combate os direitos sexuais combate a democracia, alguns por ignorância, outros por ideias não democráticas.

Em primeiro lugar, a primeira ideia é uma ideia de democracia forte, na qual se possa defender os direitos sexuais. Num segundo momento, mostrar como, historicamente, o movimento dos direitos sexuais, particularmente o homossexual (sei que a diversidade é muito maior, que as primeiras lutas públicas do movimento homossexual brasileiro foram travadas pelas travestis, mas vou falar, por simplicidade, de movimento homossexual), teve obstáculos, passos e estratégias para enfrentar o preconceito. Em terceiro lugar, fazer análise da estrutura de defesa de direitos que temos hoje, embora não conjuntural, mas acho uma vergonha não termos lideranças no Executivo para conduzir a luta pelos direitos sexuais. É significativo no Estado atual, não apenas nos direitos sexuais. Os lugares onde foi concedido o casamento entre pessoas do mesmo sexo foram os presidentes de governo que enfrentaram a resistência social. A falta de liderança, logo, é um problema sério, mas é manifesta no Brasil, em várias áreas.

A democracia é um regime de tolerância. Começou com a tolerância às religiões. A democracia pôs fim às guerras civis de religião. A falta de democracia é historicamente fonte de guerra. A democracia ultrapassou a convivência e apoio dos diferentes religiosos, passando a uma segunda fase, a aceitação e a institucionalização da divergência política. Hoje estamos lutando, ao lutar pelos direitos sexuais, pela divergência ou diferença social. É um processo interno à própria democracia. A democracia, já disseram, não é um regime para quem gosta de segurança, pois ela se amplia. Quem acha que está bom do jeito que está não está no espírito democrático, ela sempre pode ser ampliada.

A democracia é um artefato cultural e institucional. Isso implica a insegurança, pois se não é um artefato natural, precisa ser criado. Ver onde falta democracia e ampliar direitos. Só consigo manter a democracia renovando em todas as gerações a adesão ao espírito democrático. Preciso que as pessoas se convençam do valor da democracia e da liberdade.

A democracia é, num certo sentido, adversaria do familismo em certo sentido. Estudo clássico de um sociólogo, com um diagnóstico do sul da Itália, mostra que as pessoas só tinham solidariedade dentro das suas famílias. Não conseguiam instituir um espaço público. A família é inimiga da república, o que falo como provocação [já que é ponto comum dizer que “a família é a base da sociedade”, como faz o artigo 226 da Constituição Federal de 1988]. Os clássicos dizem que onde há aliança com a família não há república. Dizer que família é base da sociedade não faz sentido no aspecto social e político (mas só no orgânico/biológico). Todos nós do Direito conhecemos a história de Antígona. A aliança dela é com o irmão. Ou tem aliança com os de sangue ou consegue superar isso e criar a república. Logo, temos um problema no discurso brasileiro que precisa ser esclarecido.

Finalmente, há uma tensão entre algumas esquerdas e democracia. Algumas a consideram menos importante, pois é um regime de liberdades, e estas camuflariam as desigualdades reais. Outra tensão, típica no Brasil nos anos de Golpe, de algumas esquerdas de dizer que a luta pelas liberdades civis seria uma luta menor do que a luta pela fome e pela igualdade material. Isso gerou resistência muito forte nas esquerdas na luta dos direitos homossexuais. Só em 1979, em texto de Carlos Nelson Coutinho (“A democracia como valor universal”), defendeu-se que ela não é simplesmente um instrumento para a esquerda conquistar o poder e fazer a sociedade que quer, mas que a democracia é um valor em si mesmo.

Movimento Sexual começa no Brasil com atraso porque teve que enfrentar a ditadura. O primeiro passo do Movimento Homossexual importante foi dado pela luta pela visibilidade. Acho que aqui temos uma reflexão de Hannah Arendt que diz que no espaço público, onde nada conta a não ser que se faça ver e ouvir, visibilidade e capacidade de se fazer ouvir são da primeira importância. Então, primeiro passo do Movimento Homossexual foi dar visibilidade à vida e às pessoas de orientação homossexual ou de várias orientações sexuais não heterossexuais. Para dar visibilidade a essa vida, uma visibilidade não caricata, não de gueto, do bobo da corte (como diziam no passado alguns do movimento) foi preciso enfrentar a ditadura, afirmar a liberdade de manifestação, de reunião, de passeata contra o Delegado Riqueti em São Paulo, pelo fim da censura. O regime tinha se acoplado à censura e ao regime de costumes. O regime censurou as diferenças em geral e, portanto, manifestações como as dos homossexuais, que abalavam, no espaço público (não necessariamente nas instituições políticas) o fechamento do regime. Logo depois, nós juristas tivemos que enfrentar uma luta dentro de nosso campo. Uma cultura jurídica intrinsecamente homofóbica.

No meu tempo de faculdade de Direito, em 2006 um livro também fala isso, fala(va)-se em “casamento inexistente”, e era uma coisa incompreensível a diferença entre nulo e inexistente, afinal, a diferença é inexistente. A diferença foi criada para se referir exclusivamente à possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Porque uma vez que o Código Civil Francês, de 1804, havia convertido o casamento de sacramento em contrato, começava a parecer possível contratar essa sociedade universal com pessoa do mesmo sexo, então criaram a figura do casamento inexistente. Não há diferença nenhuma, só foi criada para desprezar essa união. Se lermos os livros de Medicina Legal do meu tempo a coisa é bárbara, não farei as citações, mas elas influenciavam o funcionamento das instituições jurídicas. Não eram só as mulheres que não podiam prestar exame para o Ministério Público e para a Magistratura, pois sabiam que não iam entrar, eram também os homossexuais, pois os tribunais faziam provas e investigações secretas para não permitir que essas pessoas, consideradas “não confiáveis”, fossem aprovadas. Heterossexuais de conduta duvidosa não enfrentavam essa resistência. Esse enfrentamento depende da visibilidade. As pessoas do meu tempo, para falar mal de alguém, acusavam-no(a) de homossexual. Ora, ninguém tenta ofender alguém chamando-o de heterossexual, “trata-se de um heterossexual e, portanto…”. Isso é um enfrentamento, a cultura passa pela liberdade de expressão, o que estamos vendo hoje era impensável 40 (quarenta) anos atrás. A OAB era silente. Antes de Raimundo Faro, a OAB não lutava pela democracia, mas pela ordem jurídica, que permitia a censura… Logo, a luta do movimento homossexual foi uma luta que se aliou a outras lutas, para pedir liberdade de expressão, de reunião, e aí entra uma contribuição importante específica do Movimento Homossexual: pedir a aplicação igualitária da lei. Pedir aos órgãos do executivo e do judiciário uma aplicação igualitária da lei.

Nessa história entra a epidemia de AIDS do final dos anos 1980, e acho que ela teve uma importância política extraordinária. Com a AIDS veio uma visibilidade imposta. Um escritor do Movimento diz que infelizmente a epidemia fez, em termos de visibilidade, mais do que qualquer Movimento Social tinha imaginado. Pessoas começaram a aparecer infectadas. Mas houve a visibilidade das redes de solidariedade. Se eu tinha um amigo doente e ele fosse LGBT, eu precisava apoia-lo, em primeiro lugar contra as famílias e comunidades religiosas, que os expulsavam (como com os leprosos no passado), essas redes criaram movimentos e exigiram do Poder Público uma política social. Daí, saímos da luta pela liberdade para assumir um caráter social e lutar por direitos sociais.

Aí se discutiu uma terceira fase. Após os direitos sociais, começaram a lutar por um direito universal de reconhecimento, para que essas famílias fossem reconhecidas. O reconhecimento dessas famílias entrou na pauta.

Qual o estágio atual? Nossa luta é a reafirmação do Estado Laico. Hoje o Movimento Homossexual está novamente na vanguarda da defesa da democracia quando faz a defesa da laicidade da república. Se a república perder a laicidade, caímos na guerra civil religiosa de várias maneiras. Não há exagero, é um perigo muito forte e está sendo enfrentado pelo Movimento Homossexual em primeiro plano. Segundo, luta contra o discurso de ódio. Não temos um regime de tolerância social. É muito difícil, muito sofisticado as pessoas perceberem que o outro pode ser diferente, e que a pessoa com quem ele dorme nem quebra minha perna nem rouba minha carteira (Thomas Jefferson). Por que não tolerarmos, ora? Isso coloca novamente o discurso do Movimento Homossexual na vanguarda da luta democracia. Que espécie de barbárie leva vocês a matarem as pessoas porque elas tem um gosto diferente do seu? Esse gosto não mexe conosco.

A luta em favor da igualdade, particularmente em favor dos homossexuais, deve ser travada de perspectiva universal. Defender direitos à diferença dos homossexuais é defender o direito a diferença de todos, o que amplia significativamente o caráter democrático da sociedade. Como falavam da luta de Assis, não era para ele, todos nós somos beneficiados.

Não é porque estamos aqui com a OAB que a luta terminou. Ela continua. Muito me alegra ver os jovens nessa luta. Gostaria particularmente de um grupo que eu ajudo a funcionar na USP, o GEDS – Grupo de Estudos de Diversidade Sexual. É um motivo de orgulho ver o que estamos vendo aqui hoje e vermos essas iniciativas na faculdade. O grupo tem se dedicado ao estudo de transgêneros. É muito mais importante, olhando da minha perspectiva histórica, nos darmos conta de estarmos fazendo história e como isso é importante. Temos que pensar que nossa luta é universal, talvez a mais significativa em termos de defesa da pessoa humana no mundo de hoje, portanto, a mais universal.

 

Dra. Adriana Galvão

Agradeço, Prof. José Reinaldo, por essa importante leitura histórica. Sabemos que o senhor tem uma importância nesse grupo de estudos da USP, nada melhor que um Professor que pode ajudar a consolidar um novo pensamento para essa juventude que está caminhando. Precisamos de uma imprensa livre, que trate as pessoas com respeito.

 

Estado, Liberdade Sexual e Estado Constitucional

(Prof. Roberto Dias da Silva)

Comecei a ouvir o José Reinaldo e meu tema tem muito a ver com o dele, mas vou tentar dentro do possível não ser repetitivo, com esses cacoetes de professor, citando um autor aqui e ali.

A minha fala parte de três observações iniciais, mais teóricas, que levam em consideração alguns pressupostos para a segunda parte. A primeira dessas três observações diz respeito a uma análise sobre igualdade e diferença, a segunda sobre democracia e respeito às minorias e a terceira sobre Estado Laico e direitos fundamentais, para, em seguida, analisar alguns casos relacionados à livre orientação sexual, tanto na Corte Europeia de Direitos Humanos quanto no Judiciário Brasileiro para, no final, fazer algumas considerações críticas.

Direito à igualdade e à diferença como forma de análise da igualdade em si. O José Reinaldo disse que está pregando para convertidos, faço a mesma coisa, mas vale lembrar que o art. 5º da Constituição diz que todos são iguais perante a lei, sem distinções, garantido o direito à igualdade. Fala em igualdade duas vezes (entre outras coisas, mas duas menções há só à igualdade). Esse embate entre liberdade e igualdade parece algo que precisamos superar. Leva-se em consideração a ideia de abolição de privilégios (igualdade formal), mas há também a inviolabilidade do direito à igualdade, a igualdade material, que tem duas vertentes, uma como ideal de justiça distributiva (critério socioeconômico), outra como igualdade de justiça, como reconhecimento de identidades. Aqui temos outras passagens da Constituição: art. 3º, inc. IV, que fala sobre a igualdade orientada pelos critérios de gênero, raça, etnia, vedando quaisquer formas de discriminação, logo, também de orientação sexual. Aqui as igualdades formal e material, como abolição de privilégios, ideal de justiça social e de reconhecimento de identidades me fazem lembrar passagem belíssima de Boaventura de Souza Santos, para quem temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, e diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. Daí igualdade que não reproduza, alimente ou produza desigualdades. Por isso, percebemos que diferença não é sinônimo de desigualdade. O direito à diferença dá força a uma sociedade plural, ao multiculturalismo.

Nisso ingresso na democracia e respeito às minorias. A regra de ouro da democracia é a decisão tomada pelo consenso da maioria, regra procedimental que visa dar legitimidade ao regime, mas o fato das decisões serem tomadas pela maioria pressupõem necessariamente a existência da minoria. Se não se exige unanimidade, exige-se existência de dissenso, de minoria, e dissenso só aflora se houver respeito às minorias e aos direitos de liberdade. Mais que o regime do consenso, a democracia é o regime do dissenso, que é pressuposto da democracia. Daí a figura tradicional dos direitos fundamentais como trunfos contra a maioria, trincheiras contra as decisões da maioria política, auxiliando a posição mais débil, impopular, ameaçada, não para prevalecer sobre a maioria, mas para garantir as minorias o direito de escolher seus planos de vida. Jorge Reis Novais diz que a minoria tem o direito de se reconhecer autonomamente e ter seu próprio plano de vida. Deixar que os outros decidam sobre o que podemos fazer, falar ou não fazer é no mínimo paternalismo, que talvez seja algo dos mais despóticos, não por ser mais opressivo que as tiranias, mas como insulto à minha concepção de mim mesmo como ser humano (cf. Kant), um parente do despotismo.

Estado laico e direitos fundamentais. Igualdade como reconhecimento de oportunidades não existe sem separação entre Estado e Igreja. Ainda que tenhamos maioria religiosa expressiva numericamente, que elege representantes no Parlamento, Executivo etc, essa predominância obviamente não pode contrariar a Constituição e temos que nela encontrar proteção aos direitos da minoria e resistência a padrões morais de uma maioria eventual. A secularização estatal impõe que os dogmas da Igreja não possam impor condutas por meio do Estado. A pessoa que tem uma religião é protegida pelo Estado Laico, que também protege quem não segue religião alguma. O que não se admite é que o Estado assuma aquela concepção moral (dogma) e puna pessoas por não seguirem aquela concepção. Os grupos religiosos têm o direito de seguir seus dogmas. Jonatas Machado diz que a comunidade laica é inclusiva, admite a inclusão, tenho que respeitar as outras religiões, aqueles que não têm religião, mas não posso querer impor uma conduta a outros com base em minha religião, muito menos por meio do Estado. Logo, o pluralismo não admite uma única forma de pensar e agir (igualdade e liberdade).

Com a laicidade do Estado, as religiões podem no máximo impor sanções a seus seguidores, mas não usar o Estado para fazer isso com outros. O Estado tem que garantir a liberdade de culto, de não crer, de agir com base em suas crenças ou na falta delas.

Com essas três questões (igualdade, democracia e laicidade), passo a analisar alguns casos da Corte Europeia e do Judiciário brasileiro, uma análise qualitativa, de casos que possam traduzir alguns desafios não contemplados pelos textos normativos que acenam para a construção de uma igualdade material e reconhecimento de identidades. Casos que demandam alguma ousadia das cortes, por interpretação evolutiva, gerando decisões paradigmáticas.

Três casos que foram levados à Corte Europeia de Direitos Humanos, dois estão juntos. No caso Perkins vs Reino Unido e em outro caso, houve demissão de homossexuais pelas Forças Armadas após investigação de suas vidas privadas. Eram militares com conduta exemplar nas Forças Armadas e foram punidos apesar do reconhecimento disso. Tomaram todas as medidas internas contra essa demissão contra discriminação por orientação sexual. A Corte Europeia acolheu a denúncia e condenou o Reino Unido, afirmando que a política de expulsar homossexuais após investigação da vida privada viola o direito à privacidade e à proibição de discriminação. Argumentou que isso é uma indevida ingerência na vida privada não justificável com a necessidade de se manter uma sociedade democrática.

Esses casos me fizeram lembrar de algumas questões ocorridas no Brasil. Em uma delas especialmente, recentemente, há uns cinco ou seis meses, saiu matéria no jornal falando na admissão de homossexuais nas Forças Armadas, um pouco mais frequente na Marinha: no Exército ainda há resistência, a Aeronáutica sequer analisa a questão. Há uns dez anos estava para escrever um artigo e me deparei com um artigo que fala do “crime de pederastia”, do Código Penal Militar (COM), decretado após 1969, após o AI-5, que fala na criminalização do ato sexual nas instalações militares – e “pederastia”, quando li, é uma expressão tão antiga, e está lá, no CPM. Será que isso foi recepcionado pela Constituição de 1988? Será que isso era admitido e constitucional pela CF-69? Parece-me que não e vi que em setembro-13 foi proposta ADPF para se declarar a não recepção dessa norma pela CF;88, movida pelo MPF, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, felizmente, creio que deve cair.

Caso Goodwin vs Reino Unido. Tratou-se de reconhecimento legal de transexual que havia feito cirurgia de transgenitalização, e de combate à discriminação. A cirurgia foi feita, mas havia falta de reconhecimento legal em seus documentos civis, com o nome ainda sendo masculino, causando dificuldades, constrangimentos e humilhações. A Corte Europeia reconheceu que havia uma violação aos direitos humanos com fundamento no direito ao respeito à vida privada, sustentando que fatores biológicos não poderiam ser decisivos para negar mudança nos documentos nem impedir o casamento, apesar da referencia ao casamento entre homem e mulher na Convenção Europeia.

Último caso trata de um pedido objetivando o reconhecimento legal de transexual e consideração de aposentadoria a mulheres (seu “novo sexo”). Solicitava direito à aposentadoria e teve pedido indeferido sob fundamento de que só poderia se aposentar na idade do sexo masculino. A Corte Europeia também entendeu pela violação de direitos humanos nesse caso.

Lembrei de outro caso paradigmático no Brasil, do TRF;4, relatado pelo Roger Raupp Rios, de inclusão na tabela do SUS do procedimento de transgenitalização. Levou-se a questão da transgenitalização para o âmbito do Judiciário, com decisão magnífica de Raupp, exigindo que o SUS fizesse a cirurgia de transgenitalização.

No Judiciário Brasileiro separei dois casos. Em 1998, no STJ se deparou sobre a credibilidade do depoimento de uma testemunha homossexual (!). O TJDF tinha desconsiderado o depoimento de um homossexual dizendo que era um testemunho suspeito pela sua homossexualidade. Felizmente o STJ disse que, apesar de durante muito tempo ter-se recusado credibilidade a testemunhos de escravos, presos, prostituas, bem como por distinções sociais, como entre patrícios e plebeus, senhores de engenho e cortadores da cana etc, os direitos humanos visam afastar distinção. Logo, o requisito é a pessoa ser isenta, não ter interesse no desfecho no processo. Precisou de decisão judicial para isso…

Mas o STJ não é só flores. Caso de circulação de homossexuais e travestis na via pública. A mesma turma do STJ se deparou com gays e travestis que se dedicavam à prostituição, que pediam Habeas Corpus (HC) preventivo. Por unanimidade, afirmou-se que o controle policial de gays e travestis não violava direito de ir e vir, pois seria exercício do poder de polícia para atender a ordem e segurança pública… A mesma Turma, no mesmo ano, decide algo de forma totalmente dispare…

Depois há o caso emblemático da união homoafetiva, que tem uma questão paradigmática, que é a discussão de não ter previsão expressa no texto normativo e o Judiciário se esforçar para decidir a favor dos direitos humanos, por mais que o texto normativo pudesse nos levar a uma conclusão mais fácil, mas discriminatória. Discutiu-se muito então sobre a vontade do legislador, a Constituinte e a vontade da constituição (mens legis x mens legislatoris). Os defensores da discriminação diziam que quando se discutiu na Constituinte, a proteção entre homem e mulher, entendia-se exatamente excluir a possibilidade de união entre pessoas do mesmo sexo. Por outro lado, argumentou-se que a norma do §3º do artigo 226 não vinha para excluir, para incluir. Isso me fez lembrar que ouvi muito sobre decisões estaduais em que se tinha a discussão sobre “os concubinos” e que a mulher entrava com ação na justiça, a ação tramitando na vara cível por se considerar como questão patrimonial, e a mulher em regra pedia indenização por serviços prestados. Pensava eu, aos vinte e poucos anos, que serviços seriam esses. O advogado não tinha outra saída, ela não tinha direito a nada, era a alternativa que existia, tinha um resultado prático, mas era uma solução indigna em sua essência, aí veio o §3º do art. 226, fazendo um salto, e fala da proteção do Estado à união entre homem e mulher, portanto, uma norma inclusiva, não uma norma excludente [discriminatória], portanto, não poderia ser usada para excluir a união entre pessoas do mesmo sexo. O fato de estar ali a proteção entre homem e mulher não significa que a Constituição exclua outras formas de união.

Há uma certa fluidez nas ideias que são didáticas, mas reducionistas, entre a prestação do Estado e abstenção do Estado. Geralmente, se diz que liberdade é abstenção e igualdade prestação, mas na prática não é bem assim, as coisas são muito misturadas, juntas, nos dois casos. Segunda questão é que o fato de termos a laicidade do Estado como algo essencial a democracia, o fato é que temos realmente um aumento da chamada base “evangélica” ou “religiosa” no Parlamento. Na última legislatura dobrou o número dessa base parlamentar, o que faz com que, naturalmente, as questões relacionadas aos direitos fundamentais das minorias, como trincheiras ou trunfos como maioria sejam levados obrigatoriamente ao Judiciário, levando a todas as questões sobre a judicialização da política.

Encerro fazendo uma menção rápida e lembrei e reli um artigo que fiz numa ocasião, há quase dez anos, 2005, quando havia duas meninas que estavam num campus da USP da Zona Leste e foram levadas à delegacia porque se beijaram. Ficaram horas na Delegacia e felizmente se negaram a assinar qualquer documento, indagando qual crime lhes era imputado. Fiz um artigo perguntando se “Beijar é Crime”. Comecei a relatar que não estamos no Paquistão, estamos no Brasil, em São Paulo, não estamos na Idade Média, mas no século XXI. Foi o artigo que mais repercutiu, com vários comentários, alguns apoiando, outros sendo agressivamente contrários. Pela primeira vez fiz uma réplica, um novo artigo sobre o mesmo assunto, com título “Apologia ao crime em defesa do beijo”, sugerindo (ironicamente) alguns tipos penais (beijar: algumas horas na delegacia; aumento de pena por beijo a pessoa do mesmo sexo etc). Só se pode conhecer outra pessoa sem perigo de ódio com um pouco de amor.

 

Dra. Adriana Galvão

Tivemos decisão em primeira instância recentemente em favor ao uso de banheiro por travesti de acordo com sua identidade de gênero, mas infelizmente o TJSP a reformou.

Tivemos realmente uma derrota com o enterro precipitado do PLC 122. Mas espero que a Dra. Luiza Eluf possa nos ajudar com a legislação penal acerca do tema. Nos passará a ideia da necessidade da criminalização das condutas homofóbicas, um papel de grande importância e responsabilidade.

 

Homofobia.

Reconhecimento e Criminalização.

Profa. Luiza Nagib Eluf

É uma felicidade estar aqui discursando sobre a diversidade sexual, porque estou há pouco mais de um ano na OAB, pois passei mais de 30 (trinta) anos no MP, mas a OAB sempre foi para mim este forum de democracia, tolerância, que abrange e abarca com muito carinho os direitos da cidadania. Foi nela que comecei, há muitos anos, a luta pelos direitos da mulher, e lutar pelos direitos da mulher é lutar pelos direitos humanos de todos, e como nós sofremos na carne temos que dizer o que estamos sofrendo. Luta pelos direitos humanos de todas as brasileiras e brasileiros. Hoje me transformei em advogada número quinhentos mil e tanto. O número não importa, o importante é estar aqui.

Advocacia é tribuna livre, ela me permite vir aqui e dizer que hoje estamos falando da crônica do absurdo. Estamos pedindo igualdade a pessoas por sua diversidade sexual. Parece que estamos na Idade Média. Isso é ridículo. Tenho vergonha do meu país sobre isso. Nós fizemos uma proposta de reforma penal. No ano de 2012, o Senado Federal, sob a presidência de José Sarney, decidiu reformar toda a legislação penal em vigor no Brasil e, para isso, convocou 16 (dezesseis) juristas de todo o país para fazerem a proposta de anteprojeto de novo código penal, de toda a legislação penal, que não é pouca. Nosso país é prolixo em leis, mas tudo continua como antes. Nos dedicamos um ano e meio de trabalho em Brasília, pensando em modernizar nossa legislação (porque se fosse para deixar tudo como está não se deveria gasto dinheiro público nem tempo dos juristas que compunham nossa comissão), apresentamos um anteprojeto democrático. Um anteprojeto que criminalizava a homofobia, que criava os crimes contra os direitos humanos, que permitia o aborto por necessidade da gestante, até o terceiro mês da gestação, que aumentava penas de maus tratos contra animais (que merecem nosso respeito, a natureza e o meio ambiente também).

Apresentado ao Senado, o que acontece com o nosso trabalho? Tira-se isso e aquilo e, entre as canetadas absurdas da crônica do absurdo, a homofobia desapareceu. Qual não foi a minha surpresa, mas no índice eles a mantiveram. Eles tiveram a indecência de nos mandar a arte final da Comissão de Senadores, não da Comissão de Constituição e Justiça, no Senado foi criada uma Comissão de Senadores para analisar nosso projeto. O índice não tem as páginas, porque não foi um trabalho definitivo, mas só a relação dos crimes. Aí fui procurar e vi que não estava lá. Liguei para o Prof. Luiz Carlos Gonçalves, coordenador da nossa Comissão, o que mais insanamente trabalhou, que confirmou que tiraram do texto. É o fim do mundo. Ainda põem no índice, para nos enganar. Vários outros avanços foram tirados do nosso texto. Portanto, quando os críticos vierem dizer que não está bom e sempre haverá quem ache defeito, houve quem apontou, e não era perfeito mesmo nosso trabalho, tivemos pouco tempo para reformar toda a legislação penal, fomos ofendidos, destratados etc. Não há importância, estávamos trabalhando pelo bem geral da nação – as pessoas diziam “você é abortista”, isso é um país de loucos, a quantidade de loucos que há aqui parece bem maior que em todo o mundo… Aí veio a notícia da Folha de São Paulo que veio dar uma luz nesse tormento que passei. As pessoas ficam possuídas de ódio quando tratam da homossexualidade. Pensei que alguma explicação havia de ter, porque o Brasil se jacta de ser o país do futebol, um esporte de tantos homens se abraçando e confraternizando, mas é pelo futebol, tudo bem… [risos generalizados]

Agora, se for um pai que está no rodeio com o filho dele, abraça o filho e beija o filho e vem uma turma de dementes espancar os dois achando que era homossexualidade… O nosso país é doido, gente…

O carnaval é justamente o período em que todo mundo solta a franga [risos generalizados]. Internacionalmente famoso pelas mulheres sem roupa, os homens vestidos de mulher, os grandes shows de dança e música, algo lindo e maravilhoso, mas será que o Brasil é isso, futebol e carnaval? Na verdade, o problema do Brasil, parece-me modestamente, o Brasil ser o 58º país dentre 65 em termos de educação… Nosso problema é de ignorância, um país onde graça a ignorância, porque o sistema público de educação é ruim, se fosse bom estaríamos bem informados. Segundo, o Brasil é um dos países mais conservadores e tradicionalistas do mundo. Aqui todo mundo quer fingir que é o que não é, e todo mundo assumiu aquele pacote de preceitos culturais e comportamentais do tempo da colonização, quando vieram impor regras aos índios.

Aí volto ao Senado: homofobia com violência não é crime. Ora, por que não é crime? Respostas: ah, porque se colocar que homofobia é crime, o projeto não passa… A resposta é essa: ou tira ou não passa… bem, se é para deixar tudo como está, por que ficamos um ano e meio trabalhando nisso? Para fazer uma reforma penal ultrapassada? Resposta: olha, se houver agressão pode ser lesão corporal, homicídio já é crime, ofensa há crimes contra a honra, e se houver… interrompi, dizendo que li o Código Penal, mas se o motivo do crime é algo que tem importância fundamental, o artigo 121 do Código Penal em vigor, no parágrafo segundo, diz que se é por motivo torpe, é qualificado, e muitos outros (dificultar a defesa da vítima, emboscada, meio cruel etc). Ok, homofobia como crime qualificado então. “Não”. Falo porque aquilo que não é falado, não é pensado, não é discutido e não é interpretado. Argumento sempre que há outras formas de punir a homofobia, mas a lei, como dizia Goffredo Telles Jr, ela é educativa, ela induz ao caminho, a lei diz “siga por este caminho, não siga por este outro caminho”. Então, o fato de constar na lei tem um efeito pedagógico, psicológico indutor. Está escrito na lei. Eu não posso me preocupar se, em determinados templos, em determinados locais de conversa e discussão, as pessoas que querem induzir a homofobia estarão cometendo crime. Eu não me preocupo se não poderão falar, me preocupo com poderem falar, em poderem jogar a homossexualidade no pacote dos pecados. Isso não pode ser. É o mesmo que dizer que você nasceu loira, você pecou. Não existe isso. Estou cansada do absurdo que passamos nesse país. Às vezes 24 horas de um dia tentando mostrar o absurdo, mas as pessoas se apegaram justamente ao que não faz sentido. Porque elas não têm rumo, não sabem para onde ir, porque o nosso sistema de educação não consegue educar… Um país que não resolve questões minimamente práticas é um país sem noção…

Tem que ter solução e o Brasil não tem solução, não consegue pensar a solução, o Brasil prega o absurdo e angaria milhares de seguidores… Essa é a verdade. Se eu montar um palanque para mim, vou criar uma religião, pronto [risos generalizados]. Tenho uma querida amiga, saí candidata nas eleições passadas porque eu quero falar, já é a 15a Comissão de Reforma Legal que participo, colocamos as coisas adequadas, mas depois não posso falar, porque não sou deputada, não posso estar lá para defender o que está escrito, explicar etc, aí essa minha amiga me falava para fundarmos uma religião e encheríamos o auditório [risos generalizados]. Aí falaríamos tudo: seja tolerante, seja bom, não brigue, não xingue, não mate, todas as pessoas merecem respeito.

Na religião não se tem que explicar nada. Você só inventa algo, não precisa dizer por que [aplausos], fala que homossexual é doença, que satanás tem que sair desse corpo… Ora, a Constituição Federal diz que não se pode agir no território nacional com preconceito… Se eu pegar meu microfone e pregar pela “cura gay”, estarei pregando um ato anticonstituição, porque a Constituição proíbe toda forma de preconceito. Aí dizem que as cotas são uma discriminação, mas não há relação, a Constituição proíbe discriminação que causa prejuízo, não a que inclui. Temos que entender o espírito da Constituição Cidadã de 1988, para que possamos todos viver em paz, e esse país é extremamente violento, onde mais se mata mulher no mundo, outra crônica do absurdo total… você não gosta mais de mim, então vou acabar com sua vida… Eu peço às pessoas, qualquer que seja o relacionamento afetivo tem que acabar na Vara das Famílias, não no Tribunal do Júri, mas a realidade mostra o contrário (15 mulheres por dia são assassinadas, a cada 10 minutos uma mulher é espancada etc). Nós temos um potencial de violência que precisa ser trabalhado.

Fiz uma palestra a pedido de uma diretoria de uma escola do ensino médio da periferia sobre bullying (que colocamos no Anteprojeto de Código Penal, mas a Comissão também retirou, eu que sonhava que a coisa ia funcionar…). Havia 560 alunos e nunca tinha falado para público de 12 a 15 anos, mas eu amei. Foi o melhor momento da minha campanha política. Passei a palavra a eles, o debate levou três horas. Bullyings da mais pura crueldade eu ouvi naquele dia… Coisas terríveis, com 12 a 15 anos, o que nós estamos criando… monstros… a menina cega da primeira fileira chorava no microfone porque foi a primeira vez que deram microfone para elas… dizia que tinha dificuldades, mas colegas não ajudavam, mas dificultavam ainda mais. Um rapaz gordo disse que jogam lanches em cima deles e o chamam de gordo… Indaguei por que os professores não conversam com os alunos sobre o tema… Depois não se quer que, adultos, eleitos, despejem de volta na sociedade na forma de lei…

Quero terminar com uma pequena reflexão. Acima de tudo, além de falarmos das leis, pois embora tenhamos que mudar e da lei mudar nosso comportamento, temos que pensar na questão política. Fui candidata porque acho que tenho muita coisa para fazer. Minha vida sempre foi ideológica, por isso tenho dificuldade… Nós que praticamos o Direito não fazemos a lei, nós sugerimos e o Congresso escreve. Na Coreia, a aspiração dos alunos é de serem médicos, policiais (as instituições têm que funcionar no Brasil), mas dão maior valor quando a criança diz que quer ser política. No Brasil, temos o contrário, porque se acredita que a política só tem pessoas abjetas etc, mas é a política que rege nossa vida. Nós temos que pensar o Direito sem preconceito, mas é tão difícil pensar que estamos no lugar do outro, no sofrimento do outro… É justo atrapalhar a vida de uma pessoa, faze-la sofrer, por sua diversidade sexual??? Não sei porque não estamos na rua protestando contra isso… Aliás, faremos uma manifestação das mães, relativamente ao dia das mães, o ato será no dia 17 de maio, depois do dia das mães, por educação de qualidade, justiça, fim do preconceito, liberdade sexual, liberdade de opinião, liberdade para ser feliz. A felicidade é poder ser o que nós somos, sem isso não dá, simplesmente não dá, não há o que compense. É fundamental ser feliz no sexo, podermos nos realizar, não ter medo de agressão por causa da nossa preferência sexual, temos que poder nos manifestar publicamente, porque não é justo não poder sair de mão dada, sair com quem queremos etc, então nós mulheres, milenarmente oprimidas (embora estejamos melhorando, mas falta muito), vamos pedir pela liberdade, mas não apenas nesse dia, mas sempre, todos os dias, como estamos fazendo aqui. Achamos justo o não-preconceito, a não-violência, o direito de ser mulher, ser homem e o direito à diversidade sexual, seja ela qual for, e temos que falar isso sem medo, pois queremos sim um país melhor a nossos filhos e filhas (no MASP, Avenida Paulista, descendo a Brigadeiro Luís Antônio, até a Assembleia Legislativa, onde soltaremos balões brancos, propagando nossas ideias).

 

Políticas Públicas, Diversidade Sexual e Direito.

Desafios à Concretização da Cidadania LGBT.

(Prof. Sérgio Carrara)

Sou antropólogo de formação, mas trabalho com Direito há muito tempo, embora só recentemente, nos últimos dez anos, sobre sexualidade.

Parto do que se chama de política sexual. Há algum tempo tenho trabalhado o tema da política sexual no Brasil, particularmente a noção de direitos sexuais. Essa ideia de política sexual é interessante porque permite que pensemos em conjunto temas em geral tratados separadamente: aborto, contracepção, diversidade de orientação sexual e identidade de gênero, estupro, casamento-divórcio, DST/AIDS etc. A política sexual nos permite trabalhar todos esses temas e pensar o que há de comum em relação a cada um deles. Miro os direitos sexuais, mas meu poço de observação tem sido o tema da diversidade sexual e de gênero. A terminologia homossexualidade, diversidade, gênero etc daria uma palestra em si mesma. Cada vez menos falamos em homossexualidade e mais em diversidade sexual e de gênero, mas quando comecei a trabalhar o tema falava-se apenas em homossexualidade.

Tenho pesquisado e acompanhado o tema da discriminação e da violência, sobre vitimização, bem como as respostas institucionais a estas discriminações e violências, sejam propostas pelo movimento LGBT, governos, novos serviços, políticas públicas etc. Esses têm sido meus temas. Não vou apresentar aqui um balanço de a quantas andam as políticas LGBT no Brasil, mas um exercício de sobrevoo, de olhar a floresta antes de chegar às árvores, pensar a política sexual em geral para ver como as políticas LGBT nela se inserem. É um desafio, um convite que faço a vocês.

Relativamente a valores e normas de sexualidade, as sociedades ocidentais modernas, como a brasileira, parece repousarem sobre uma falha no sentido geológico, como se estivéssemos em terreno instável, no qual diversas forças colidem de tempos em tempos, provocando abalos. Em 2011, tivemos a polêmica disputa entre parlamentares e intelectuais sobre o material produzido por ONGs, sob a chancela do MEC, conhecido por seus detratores como “kit gay” e por seus defensores como “kit anti-homofobia”. É um exemplo de conflitos que vieram a público.

Minha pergunta consiste em saber em que consiste essa falha geológica, que forças geológicas são essas… Em geologia, quando ocorrem tremores e colisões entre continentes, outro aparece. Temos que pensar que velhos continentes em colisão são esses e quais novos continentes surgem desses abalos. Parto do suposto que a linguagem dos direitos humanos, sua utilização para consolidar o conjunto de reivindicações nas políticas sexuais, e a própria noção, em elaboração, de direitos sexuais, essas ideias têm que ser tomadas como um símbolo de uma nova configuração, um novo horizonte que se abre para a sexualidade. Uma nova configuração, que chamo aqui de um novo regime da sexualidade, com uma moralidade, uma racionalidade e uma regulação próprias. Apresentarei como vejo esse novo regime da sexualidade, cujo símbolo é o dos direitos sexuais, qual o regime contra o qual ele se contrapõe e como se dá essa contraposição, os compromissos entre valores contrapostos, para pensarmos as políticas LGBT.

regime secular da sexualidade, segundo Foucault, ao longo do século XIX e XX, em oposição a um conjunto de princípios religiosos, que capturava o sexo e seus prazeres na carne, pecado e sacrifício, forjou-se um regime secular da sexualidade em três pilares. Os dois primeiros pilares, um sobre uma racionalidade específica e outro sobre uma moralidade específica. Na racionalidade, o desejo sexual era visto como um instinto natural, uma necessidade fisiológica primária sobre a qual os indivíduos tinham pouco ou nenhum controle, conforme a perspectiva, principalmente os homens, a ideia do desejo sexual como força imperiosa. Na moralidade, as relações sexuais se legitimavam por sua dimensão reprodutiva ou sua capacidade de consolidar os vínculos amorosos que mantinham unido o casal reprodutivo. Mesmo quando o prazer sexual era considerado importante por outras razões (alguns médicos diziam que o sexo tinha um efeito tônico nas pessoas), entendia-se que ele só se fazia sentir durante a idade fértil. Isso quer dizer que a fronteira entre o bom e o mau sexo era estabelecida pelo caráter reprodutivo das práticas sexuais, a sexualidade compreendida sob uma linguagem biomédica. O terceiro pilar, jurídico-político, estabelecia que à sexualidade se vinculava um conjunto de entes transcendentais: raça, nação e estado, raça e espécie. A sexualidade era um interesse de estado. A ele deveriam se submeter os particulares. Os indivíduos tinham obrigações e deveres perante o Estado. Os corpos existiam em prol do Estado, no ideal do casal monogâmico, dotado de prole mais ou menos numerosa. Por isso se condenavam aborto, estupro, rapto, adultério, DSTs, esse conjunto de práticas sexuais eram condenadas em conjunto por esse regime. Alguns desses crimes, caso do defloramento e do estupro, podiam deixar de existir caso houvesse casamento posterior da vítima com o algoz. Um dos efeitos foi a introdução do casal heterossexual reprodutivo como norma biológica, cuja promoção se tornou interesse público. Importante colocar isso em perspectiva contra o novo regime da sexualidade que se coloca.

Do ponto de vista atual, esse regime antigo levou a uma série de violações de direitos humanos contra grupos que não geravam reprodução saudável, com processos de desumanização, com morte social ou mesmo eliminação física: prostitutas, homossexuais, portadores de DSTs, todo um rol de antigos e libertinos compreendidos como doentes, loucos, criminosos etc. A homossexualidade como ameaça à família e a entes transcendentais começou a ser considerada doença, quando não um crime.

O que chamo de regime secular da sexualidade, apoiando-me nas ideias de Foucault, se contrapunha a uma moralidade sexual cristã. É muito comum dizer-se que a tradição judaico-cristã tem uma distinção mais fina, mas o regime que condenava a homossexualidade se opunha a essa moralidade sexual cristã. Ambos (tradições cristã e secular) defendiam o casal monogâmico e reprodutivo por razões diferentes. Estado e Medicina por conta da raça, em prol da produção de uma população saudável; a Igreja defendia e continua defendendo por conta de uma teologia muito particular, que não consegue conceber o prazer senão nos quadros do sacrifício. O lema da moral cristã é o casal reprodutivo, um casal sacrificial, pelo prazer ter um custo potencial, que é a reprodução, o cuidado com a prole. Logo, o sexo teria lugar só nesse quadro. Mas o regime secular acaba se apoiando na moral cristã.

É contra esse regime secular e essa moralidade cristã que o novo regime começa a aparecer, sob a égide dos direitos humanos da sexualidade. Ele começa a se configurar no pós 2a Guerra, sob diferentes posições sociais que começam a roer os três pilares supra. Em alguma medida, esse regime secular vai sendo corroído pelos movimentos sociais feminista, LGBT e outros processos históricos paralelos sob o qual não me deterei (como a valorização do prazer sexual independente de preocupação pela psicologia, preocupação contra explosão demográfica etc). Vai havendo uma explosão dessas forças e a moralidade, que separava o bom do mau sexo, vai se deslocando da reprodução e vai se assentando sobre a ideia da promoção do bem estar, através dos prazeres. Em larga medida, a promoção dos valores sexuais, como a verdade interior dos sujeitos e no livre consentimento expresso na participação nesses atos é o que passa a definir o bom e o mau sexo: o sexo consentido e o sexo não consentido. Isso do ponto de vista da moralidade.

Do ponto de vista da racionalidade, o sexo vai deixando de ser visto como uma força biológica incoercível para se tornar uma tecnologia de si, uma técnica que os indivíduos usam para ser mais felizes e saudáveis.  A linguagem da sexualidade, antes biomédica, torna-se sociojurídica, antes como um instinto invariável para se tornar um desejo variável culturamente.

Quanto ao pilar jurídico propriamente dito, se no regime anterior havia relação de intensa subordinação dos interesses individuais aos estatais, torna-se mais difícil justificar a submissão dos desejos sexuais a tais interesses transcendentais. Qualquer regulação só pode ser justificada pela preservação da cidadania e da saúde. O que deve ser agora combatido não é a sexualidade não reprodutiva, mas a “sexualidade irresponsável”.

Então, começa-se a perceber que a medicalização e a criminalização que atingiam grupos não reprodutivos ou a não-conjugalidade heterossexual passam a se voltar a outros corpos, os que não têm sexo satisfatório (disfunção erétil etc, há toda uma indústria que se monta sobre o tema), os que não exibem autocontrole suficiente sobre o próprio desejo sexual, colocando sua integridade e de outros em risco, e os que sentem desejos indesejáveis, que pelos novos critérios se voltam sobre aqueles cujo consentimento pleno não pode ser assegurado. Logo, pelo novo regime, não colocados terceiros em risco ou sem consentimento, qualquer sexualidade pode ser exercitada.

Surge uma nova sensibilidade social. De um lado, sexo entre pessoas igualmente desinvestidas de poder, com violência presumida (assédio sexual, novos crimes e delitos na lei) e daqueles que passam a exercer pouco controle sobre seus impulsos e paixões (viciados em sexo, com grupos de autoajuda surgindo para tanto).

Nesse novo regime, algumas práticas mudam de sentido de maneira radical, outras menos. A homossexualidade é um exemplo, passando a encontrar elementos para se legitimar, visto que não se trata mais de dividir o sexo entre reprodutivo e não-reprodutivo, mas entre consentido e não-consentido, sendo o grande problema da desigualdade nas relações sexuais. A figura do grande mal sexual hoje é a pedofilia, sexualidade exercida entre desiguais e sem consentimento. Nesse contexto, a homossexualidade passa a ter uma legitimidade.

Com a passagem de um regime para outro, não se fala da passagem de uma opressão sexual para uma liberação sexual total. Há uma mudança de regime, algumas coisas que não eram crime passam a ser e vice-versa. A homossexualidade não é mais doença, mas passa-se a ter dois regimes.

É um processo histórico muito conflituoso.  ŋcaminhando. Gostaria de convidar o sobrinho do Assis. Precisamos de uma imprensa livre, que trate as pessoas com respeito.tude Vemos hoje compromissos entre as forças em conflito. Por exemplo, se tomamos a discussão do pleno reconhecimento legal das relações entre pessoas do mesmo sexo vemos que a moralidade cristã passa a se transformar, ante o caso das igrejas inclusivas. Há um processo simbólico de transformação simbólica, o que era visto como reprodução biológica passa a ser vista como reprodução social. Ou seja, o que não gerava procriação era reprovável. Hoje, algumas igrejas dizem que a questão não é a reprodução biológica, mas social, se as relações constroem laços entre pessoas, elas são reprodutivas, ou ao menos produtivas, sob o ponto de vista social e devem, assim, ser aceitas. Nesse processo, projeta-se um outro condenável, o promíscuo sexual, o que não tem laços. Logo, há aceitação de uma certa homossexualidade, a monogâmica, dentro de alguns padrões morais. Mas um outro conjunto de práticas homossexuais passa a ser condenável. Algumas almas são salvas do purgatório para outras serem mandadas para o inferno.

Outro ponto desses compromissos é a equação entre homossexualidade e pedofilia. No novo regime de sexualidade, a pedofilia passa a ser um exemplo do mal sexual. Aqueles que não querem que direitos LGBT sejam reconhecidos relacionam homossexualidade e pedofilia, traduzindo uma linguagem condenatória antiga com a condenação atual da pedofilia. Se pegarmos a discussão sobre o kit anti-homofobia o que estava em jogo era isso, “salvar nossas crianças da sedução da homossexualidade”, associando-se o fantasma moderno da pedofilia para se barrar o processo de novos direitos. A complexidade do mundo atual é essa: várias linguagens e trânsitos, várias tentativas de articulação, seja para avançar direitos, seja para barrar direitos. Sabemos que uma das estratégias para o reconhecimento legal das relações entre pessoas do mesmo sexo foi dessexualizar, viramos homoafetivos, houve dessexualização. Um dos seminários era sobre “quem ama tem o direito de se casar”, o que é interessante. No ponto de vista do Direito, quem é cidadão tem o direito de se casar, o amor é outra questão. Mas dentro do próprio movimento utiliza-se a ideia do amor, de que a homossexualidade produz laços, para justificar a luta por direitos. Algo muito interessante, valores diferentes sendo acionados, tanto por quem é contra, quanto por quem é a favor.

Indo para as conclusões, do meu ponto de vista, o grande desafio para a consolidação dos direitos LGBT no Brasil é compreender o cenário dentro do qual o processo de sexualização passa e o cenário das políticas sexuais como um todo. Quando se pensa no caso do aborto, tanto o aborto como a homossexualidade eram vistos como problemas próximos e do ponto de vista do antigo regime eram ambos vistos como negação da reprodução biológica, mas nesse novo regime começa-se a ter desníveis. Aborto torna-se uma coisa, direitos LGBT outra e prostituição outra. As agendas não eram muito próximas, mas havia apoios importantes entre os movimentos LGBT e feminista. A Argentina é um caso maravilhoso a se pensar, tanto a Lei de Identidade de Gênero quanto o Casamento Igualitário. Em relação à prostituição, há um movimento abolicionista muito forte. No Brasil também ocorre algo parecido, enquanto a opinião pública vai se tornando cada vez mais favorável às questões da diversidade, o aborto vai se tornando uma questão cada ver maior. Logo, importante saber o panorama para saber qual a retórica de nossos adversários, como montam seus argumentos, seja os que falam do antigo regime ou do atual regime da sexualidade, para entendermos as armadilhas em que podemos cair, pois podemos usar argumentos que nos ajudam a avançar certa agenda, mas que vão atrapalhar em outras, como a questão da afetividade, colocando a prostituição em situações mais ilegítimas.

Minha tentativa de contribuir com vocês é pensar de um ponto de vista mais amplo para que a cidadanização de alguns não seja a sujeição ainda maior de outros.

 

Gênero e Direitos.

Desafios do Arcabouço Jurídico Brasileiro

(Prof. Dimitri Sales)

Refletindo sobre o que é ser mulher, o que é ser homem, essas são duas perguntas que acho que fundamentam qualquer diálogo sobre gênero, mas não são fáceis de ser respondidas. Algumas ciências e instituições tentaram algumas, como o que é ser pessoa, o que é mais fácil do que sobre o que é ser mulher. Para a biologia, refere-se aos microorganismos vivos que compõem o sujeito, constituindo-se organismo complexo. Para a religião, pessoa é fruto que nasce do ato divino daquele que cria, faz e desfaz, a pessoa sendo imagem e semelhança de Deus. Para poetas, pessoas podem ser o resultado do destino (Drummond). O Direito tenta desenhar sua concepção de pessoa, e essa concepção contemporânea está muito ligada à dignidade humana, pessoa que traz em si intrinsecamente essa ideia, que não é ideia nova, que vem desde os pré-socráticos e antigos, mas que no tempo atual tem raízes no pensamento kantiano, do sujeito ser visto como fim em si mesmo, não podendos er instrumentalizado, sou a realização de mim mesmo, não podendo ser usado para outros fins.

Uma vez formulada ou concebida, a pessoa se concretiza no espaço real, físico, limitado, que podemos chamar de corpo, e o Prof. Sérgio analisou o controle sobre o corpo, e esse corpo, embora nos pertença, não é livre. Várias instituições e ciências tentam dizer como se apropria desse corpo. Medicina fala que corpo sadio é o livre de doenças, pouco importando questões emocionais, psicológicas, emocionais, a integridade do sujeito é irrelevante a ela, e aí se constituem padrões sobre o que é ou não doença, muitas vezes pautados em questões políticas, não médicos propriamente ditas. Biologia reconhece corpo e sujeito a partir, por exemplo, de sua estrutura anatômica do pênis e vagina e define papéis corporais de homem e mulher por sua estrutura reprodutiva, limitando-se a essa compreensão de corpo, apropriando-se do sujeito por uma definição biológica, embora possamos afirmar que ele não é biológico, mas em transformação. Religião diz que corpo deve estar pronto para ser santificado e sacrificado, sagrado, um corpo puro, não voltado ou devotado a outras experimentações que não as que lhe deem a pureza de se apropriar do Espírito Santo, impondo um dever de se tornar santo, com uma apropriação clara das religiões pelo corpo, que nega outras dimensões, como a dimensão prazerosa do sujeito.

O Direito também se apropria do corpo, o Direito inventa a pessoa e vice-versa. O Direito vai do macro das relações sociais ao mais profundo dos sujeitos, pautando o comportamento das pessoas no âmbito da sexualidade. O casamento é um instituto contratual onde se estabelecem deveres e direitos, mas na sua concretização e experimentação humana diz muito mais respeito à dimensão afetiva, de uma pessoa que ama a outra, construção de laços formados na afetividade. O Direito estabelece regras para o casamento, a idade dos afetos, estabelece direitos ao casamento, e deveres a uma relação que é eminentemente íntima, deveres que violados podem gerar anulação do casamento, autorizando elucubrações jurídicas absurdas. Por exemplo, em São Paulo, uma candidata a vereadora tinha como proposta que se criminalizassem as pessoas que fizesse sexo sem camisinha, sob fundamento de evitar a transmissão de DSTs. Controlar infecções é importante, mas como se da o processo de controle? Teríamos que comunicar a Prefeitura que vamos praticar sexo? Como seria o concurso público, sua prova prática? O processo administrativo para punir aquele, como produzir a contrapova, o ônus da prova de que a camisinha furou… A ideia, por mais que possa parecer interessante, se perde no ridículo e se transmuta porque no nosso inconsciente o Direito tem a prerrogativa de regular as condutas sexuais. O corpo para o Direito é normatizado, desde as macrorrelações às microrrelações. O Direito tem como vocação, talvez autoritária, de estabelecer a ordem social. Ainda que não saibamos a ordem social. O que é a ordem: Melhor, as ordens, no plural, mas o Direito sabe que há um princípio de uma ordem e tenta estabelecê-la(s).

Para um trabalhador, a ordem é trabalhar para seu próprio sustento, daí seria necessária a reforma agrária. A mesma ordem contra a reforma agrária pode ser contrária, discordando-se do que seja a função social da propriedade. Nas interações sociais há ordens, no plural, diferentes formas de conceber a ordem, mas o Direito, com certa arrogância às vezes assumidas por nossa parte (professores tornados pop stars, pouco importando o conteúdo), tem como pressuposto de validade que suas regras serão sempre cumpridas, mas sabemos que nem sempre elas o são, do contrário não teríamos um código para punir que as descumpre (código penal etc). Logo, ao estabelecer uma ordem, sofre um sofrimento para manter essa ordem, aí percebendo suas fragilidades e se aproximando de outras ciências para buscar fundamentos de validade para se impor de força quase absoluta.

O Direito Moderno, que conhecemos, constitui-se no Iluminismo, que buscou pureza das ciências, dissociando a ciência jurídica de elementos intuitivos, religiosos etc, dentro de uma pureza positivista do Direito. A biologia também, buscando encontrar a verdade sobre as interações humanas por seus elementos naturais, que independem de nós. O estudo da biologia dos séculos XVII e XVIII buscava verdades absolutas, e o Direito buscando verdades absolutas, se aproximou da biologia para garantir que suas normas fossem inquestionáveis. Essa aproximação entre Direito e Biologia, buscando uma neutralidade axiológica e científica, dificultou sua aplicação na vida real. Isso se dá na relação das sexualidades com o Direito, buscando na biologia padrões para a sexualidade humana, tendo nas restrições anatômicas, genitais, para definir os padrões da sexualidade. Para o Direito, a sexualidade normal é a heterossexual, não numa perspectiva sociológica, mas biológica, estabelecendo-se regras escritas sobre o que seria a sexualidade permitida, aproximando-se da Moral, na qual há regras não escritas, mas percebidas pela sociedade, cuja não observância também gera punições, mas no Direito as punições estão previstas na lei, pautadas em critérios de racionalidade, não utilizados nas questões morais. Por exemplo, no Brasil não é crime ser homossexual, mas a prática subversiva de sexualidade que não cumpre padrões do Direito rompe uma regra moral e a punição perpassa do controle jurídico e passa a ser moral, muitas vezes com muita violência, que a moral silenciosa e percebida as aplique. Os crimes ditos contra a população LGBT são de crimes de ódio. As punições ou para o Direito não existem ou deixa de puni-las por moralismo da ruptura da sexualidade heteronormativa.

Como o Prof. Sergio citou Foucault, este citou o caso da feiticeira e da possuída, que colocou a Igreja em impasse em seus postulados dogmáticos. Diz Foucault que as “feiticeiras”, mulheres pobres fora dos centros urbanos, eram acusadas de fazer contrato com seres sobrenaturais, deixando seu corpo para uso do demônio para ter poderes, apontando que a essas mulheres era fácil aplicar a penalidade jurídica, havia um ato de vontade a negociar a sua alma. Acontece que dentro dos conventos aconteceu fenômeno grave, a possessão, freiras enclausuradas cuspiam ostias, a possessão gerando o conflito do corpo entre o sagrado e proibido, tomo isso para representar também o conflito com a sexualidade, a possuída colocou no seio da Igreja o grande problema: até que ponto era o demônio ou um exercício legítimo da sua sexualidade, até que ponto se consentia com isso (?). Até que ponto o corpo se submete a normas jurídicas, sociais, até que ponto o corpo e a sexualidade são incontroláveis e imponderáveis, fazendo o sujeito não obedecer as regras que lhes são impostas?

Nesse sentido, observo que há momentos que retomamos nosso corpo. Darei dois exemplos do processo de retomada, com autoridade, do próprio corpo.

O primeiro é a luta contra a AIDS, enquanto doença moral, que incute no indivíduo soropositivo não só aos malefícios do vírus, mas inserir-se socialmente e no mercado de trabalho. Quando os movimentos de AIDS buscam ser aceitos socialmente, há a retomada do corpo, retirando da medicina o corpo dito doente (doença moral) para inseri-lo na sociedade de forma digna. Enfrenta-se o que para a medicina e a sociedade é nocivo, impondo-o como algo positivo, inserido na sociedade.

Outra forma é a luta de travestis e transexuais. Quando esse corpo é tomado dos padrões biológicos e jurídicos, para construir um novo corpo, ou melhor, adequar o corpo a uma realidade que me é íntima, adequando-o à minha necessidade, incidindo aí um outro diálogo sobre gênero, que perpassa masculino e feminino. Ao gênero é atribuída a possibilidade de construir um corpo masculino ou feminino e dessa perspectiva se ter direitos. A garantia de direitos de gênero sob a perspectiva de que é indispensável a retomada do corpo e seu domínio para garantir direitos. A sexualidade precisa ser compreendida como direito fundamental, incluso no nosso ordenamento constitucional, porque percebida como direito da personalidade do sujeito, que se impõe sobre outros direitos inferiores. Passa a gozar de certa hierarquia constitucional maior de outros direitos, impondo sua prevalência a estes.

Sexualidade como direito humano. A ideia que os tratados internacionais de direitos humanos possuem plena eficácia para exercer a sexualidade como direito humano, ainda que se tenha que se repensar a lógica de que a Constituição está no topo do ordenamento jurídico, para inserir acima dela os tratados internacionais de direitos humanos, subvertendo lógica sempre ensinada de que tudo está submetido apenas à Constituição. O STF sempre se pautou nisso. Defendo que, para além da CF, sobre ela, estão os tratados internacionais de direitos humanos. Devemos pensar para além do controle de constitucionalidade o controle de convencionalidade, colocando acima dos ordenamentos locais e da própria Constituição os tratados internacionais, modificando as regras da própria Constituição. As decisões internacionais podem mudar nosso sistema jurídico, até a própria Constituição, sobrepondo-se a interpretações que neguem direitos sexuais das pessoas LGBT ou outra configuração cuja vivencia sexual impeça a vivencia da cidadania.

Assim, os direitos de gênero ou sexuais têm três elementos indispensáveis para se concretizar a realizar. Primeiro, o princípio maior da autonomia da vontade. Quem estabelece o exercício da sexualidade que impõe um dever de exercício é o próprio sujeito, não o Estado, a quem se impõe o respeito à sua própria decisão, que deve ser livre. Um professor disse que via dificuldade em ver uniões poliafetivas, entendendo impossível consagrar uniões entre mais de duas pessoas, mas eu penso que não era o Estado que limitaria quantas pessoas eu poderia me relacionar, a autonomia da vontade se imporia sobre o Estado.

Sobre a Lei Maria da Penha, é lugar comum dizer que ela não protege a mulher, mas o gênero feminino, donde também travestis e mulheres transexuais estão protegidas pela Lei Maria da Penha, o que depende da autonomia da vontade das travestis e transexuais que se vejam como mulheres. Parece-me que as mulheres transexuais estão por ela protegidas. Mas e os homens transexuais, deixam de estar protegidos? Numa interpretação lógica, a resposta seria sim, se a lei protege o gênero feminino, mas a interpretação não pode ser esta, pois se a violência perpetrada contra este sujeito se baseia numa identidade feminina anterior, a Lei Maria da Penha deve proteger esse homem, ainda que essa construção identitária seja masculina, na medida que a violência se deu na sua anterior identidade de gênero. A autonomia da vontade deve garantir o exercício da sexualidade do indivíduo, mas não pode ser interpretada para negar ou refrear a sexualidade.

Segundo, o direito à singularidade, direito escrito e cravado no artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo o qual toda pessoa tem o direito a ser pessoa, é o maior artigo da declaração, porque coloca a pessoa, e seu corpo em construção, a pessoa na sua integralidade, na centralidade da atuação do Estado e da produção dos direitos. O critério é ser pessoa, e se pessoa juridicamente é, isso basta para se impedir seus direitos de sexualidade.

Terceiro, o direito ao esquecimento. O direito a esquecer o passado, não como mero direito, mas como direito fundamental que compõe o direito à personalidade de esquecer o passado, que se sobrepõe a quaisquer outros direitos. A ideia do direito ao esquecimento preenche minha personalidade e se impõe hierarquicamente sobre outros direitos. O Código Civil estabelece possibilidade de anulação de casamento, por vício de vontade, por erro essencial sobre a pessoa, dizendo que se descobre um erro que lhe foi escondido e torna a relação insuportável, pode-se anular o casamento. Aí os professores de Direito Civil dão como exemplo a mulher transexual, ou seja, esconde-se a “mudança de sexo” do parceiro, e depois de 20 anos de casado sem perceber nada (!), descobre-se que a mulher fez cirurgia, diz-se que seria erro essencial, aí trazendo o argumento de que esse homem tem direito a ser pai, aí sensibilizando seus alunos. Não é verdade. Na perspectiva do direito ao esquecimento, esta mulher tem o direito de esquecer seu passado, não de omitir seu passado, impondo-se sobre outros direitos. Há que se esquecer que havia identidade anterior, a construção dessa identidade parte da autonomia da vontade do sujeito. Se há conflito de regras, uma exclui outra, mas não é isso, mas um direito fundamental ao esquecimento em conflito com direito inferior, no Código Civil, e não há dúvida de que as normas constitucionais se sobrepõem às normas infraconstitucionais, não se podendo anular o casamento neste caso, portanto, pois isso nega o direito à sexualidade da outra pessoa.

Para terminar, quero frisar algo que sempre digo em minhas palestras e na qual temos que bater forte, não apenas pelos 50 (cinquenta) anos da Ditadura Militar. É interessante que só agora se desmistificam alguns mitos da ditadura (prosperidade econômica etc – Delfim Neto disse recentemente que não houve milagre econômico), temos que repensar o papel de nossa democracia. Direitos das minorias e modelos de democracia. No fundo, tudo que estamos fazendo estamos falando de democracia. Quando houve o Golpe Militar de 1964, fomos colocados na condição de pré-direitos, por não tínhamos nem direitos civis e políticos. A luta não era pelo reconhecimento das liberdades sexuais, como na França em 1968, ou racial, nos EUA, mas para não sermos torturados e mortos, em absoluta violação dos direitos humanos. Não é possível imaginarmos direitos sexuais sem um Estado Democrático, pois independente da ideia de estarmos apenas em um Estado de eleições periódicas, algo avançou em termos de direitos humanos, temos uma democracia em fortalecimento. Nesse momento, o que é mais importante é perceber que, apesar de termos que amadurecer nossa democracia, ela é indispensável ao exercício de nossos direitos humanos; só teremos respeitado o direito à sexualidade e o direito ao esquecimento somente se soubermos que estamos em um Estado Democrático (e Constitucional) de Direito, em que a Constituição está como referencial a garantir direitos, mesmo independentemente do Legislativo.

No fundo, o que está em jogo não é apenas o direito à mudança de nome e sexo, mas a retomada de meu corpo e exercer plenamente minhas vontades, entendendo o corpo como espaço do prazer e experiências sexuais, para gozar plenamente da vida, contra todas as forças que dizem que não tenho o direito a ser feliz.

 

Perguntas.

 

Raquel Rocha. Uma jovem foi chamada de safada, preta e macada por colegas de jornalista da UNESP. A partir disso, evidente que sabemos que isso acontece cotidianamente nas escolas e universidades, quando o Sr. Sérgio disse que ou o sal salga ou não salga após o kit anti-homofobia, como salgar essa perspectiva de gênero e sexualidade apenas com gravidez, como fazer essa juventude toda se comprometer com o debate da sexualidade na escola…

Resposta (Sérgio Carrara): A questão da escola é fundamental, crucial, os preconceitos reproduzem e na escola podem ser desarticulados, ela é um espaço estratégico, de vigilância em um certo sentido. Qualquer coisa que diga respeito à escola é foco de atençãoo, recentemente uma aluna fez tese de doutorado sobre políticas públicas e estudou adolescentes LGBT, concluindo que a área de educaçãoo é a que menos trabalha sobre o tema de políticas públicas. Aproximar-se da educaçãoo com essa discussãoo já é um problema, o que para mim é interessante, pois como se tem de um lado uma sensibilidade cada vez maior sobre a pedofilia, que em alguns contextos se torna uma espécie de pânico moral, como no caso da Escola Base, uma acusaçãoo completamente infundada de pedofilia e quase houve linchamento público contra os donos da escola. Libera-se de um lado, acentua-se a vigilância em outros. Como a pedofilia é um dos focos, lembro de novo que Silas Malafaia era da CPI da pedofilia e é completamente contrário a todos os direitos LGBT. O fato de ter essa sensibilidade mais aguçada contra pedofilia faz que questões da diversidade sexual sejam cada vez mais barradas na escola, o que torna tudo muito complexo, havendo uma cidadania nessa área começando só aos 18. No caso de gênero, o Ministério da Saúide tinha lançado portaria diminuindo para 16 anos o início do processo transexualizador, mas no dia seguinte foi suspensa, como se a sociedade dissesse que libera o sexo, mas não para “crianças”. A resposta não é muito simples, pois de fato termos um movimento contraditório, trabalhar com sexualidade na infância e adolescência parece quase impossível, e mesmo do outro lado, do movimento, evita-se tocar no tema, pois se toca, é acusado de pedófilo, surgindo um silencio de várias direções, a escola tornando-se cada vez mais inexpugnável.

 

Pergunta a Dimitri Sales. Amplo direito ao esquecimento: mantêm-se registro anterior em sigilo? Como fica a questão?

Resposta (Dimitri Sales): Não há direitos absolutos, a menos não ser torturado e escravizado. O direito ao esquecimento estaria inserido no rol de como se lida nas mudanças de prenome no direito administrativo cartorial, dizendo-se apenas que houve mudança por decisão judicial, sem acesso a terceiros. Na prática, muitos juízes autorizam mudança do prenome, mas não do sexo, ou que se coloca que mudou “de homem para mulher” etc, que geram constrangimento, que publicizam um fato, que o passado seja trazido à tona, são repreendidas pelo direito ao esquecimento. Resguarda-se a isso a singularidade.

 

Rodrigo. Gostaria de falar alguns argumentos que vão questioná-lo. Você falou que o direito à tortura é absoluto, existe o exemplo EUA de que a pessoa sabe onde tem uma bomba atômica a ser explodida, e o governo poderia tortura-la, haveria direito legítimo a tortura nesse caso, logo, nem a tortura é absoluto. Sobre o direito ao esquecimento, por que a pessoa gostaria de esquecer que é transexual, como se fosse errado sê-lo? Discuti isso com uma transexual cientista nos EUA, sobre a palavra “stealth”, a nossa vida, a nossa identidade parte de um continuum desde que nascemos até morrermos. Então, o direito a ser esquecido parece contrário a isso, não quero ter a reprovabilidade da sociedade à minha sociedade atual, sou contra porque a revolução é ser aceito enquanto transexual, em seu continuum de vida. Sobre autonomia da vontade e relações poliafetivas, a autonomia da vontade tem limites no interesse público. Mormons em Utah tentaram alegar que ela permitiria as relações poligâmicas. O homem casava com 4 ou 5 mulheres, tinha 17 filhos e não conseguia sustentá-los. Entrava em sistema de assistência social porque não conseguia sustentar a todos. Alegou-se nesse sentido que de alguma forma a autonomia da vontade dessas pessoas estaria sendo limitada, gostaria que você considerasse essas questões, pois nas poliafetivas há uma série de questões que não são vistas, como relações sociais e econômicas tidas com terceiros, o que é pouco estudado e não vi ainda solução perfeita. Imagine uma sociedade que um homem rico tenha muitas mulheres e um homem pobre nenhuma, como ocorre num país árabe, as mulheres têm que ser divididas [SIC], acho que há uma série de questões não consideras ou sendo muito simplista nas uniões poliafetivas.

Resposta (Dimitri Sales): Direitos humanos formam uma gramática protetiva de direitos, principiológico e ético, impondo limites ao Estado. Direitos humanos têm na sua origem geracional e essencial de se impor contra o Estado, por mais difícil que seja em segurança pública, nunca perdendo sua vocação de impor limites ao Estado. Assim, por mais duro que pareça, não acredito que o Estado pode torturar em nenhum aspecto, mas é óbvio que isso constitui um pressuposto de formação da minha ideia, pois as coisas estão tanto na elaboração teórica quanto no prático. Há sempre uma diferença entre o que discurso e pratico, meu discurso serve para pautar minha prática. Ser o mais justo possível. Referencial teórico e intelectual. Posso afirmar categoricamente que o Estado não pode torturar nunca.

Autonomia da vontade e interesse público. Realmente, é um tema pouco estudado. Como fica a sucessão de homem com várias esposas e filhos? São situações nas quais podemos lançar sementes para sermos o mais criativos quanto possível. Pensa-se que o melhor é não pensar. Mas autonomia da vontade também se opõe ao Estado. Como sair dos desafios e dilemas a impor óbices à concretização de direitos. Historicamente, se não nos opomos ao que está posto, nada avança. Direitos humanos são subversivos. Autonomia da vontade se sobrepõe a um interesse público ou abstrato.

Transexual e direito ao esquecimento. Isso ainda impacta o movimento transexual, até que ponto elas tem esse direito ou liberdade. Acho que seria muito importante que continuassem a luta, afirmando-se identitariamente, mas cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, não cabe a mim dizer isso a outrem. Se eu não quiser dizer eu tenho o direito de esquecer meu passado.

 

Paulo Iotti. Queria fazer uma pergunta ao Prof. Sérgio Carrara, mas preciso contextualizá-la antes, e queria antes rebater o argumento do Rodrigo no seguinte: a Constituição consagra o princípio da pluralidade das famílias, logo, não se pode discriminar com base em conjecturas, em achismos, eu já escrevi sobre isso[1]como não há justificação lógico-racional que a justifique, a discriminação das famílias poliafetivas que não oprimam qualquer de seus integrantes é inconstitucional. Mas voltando. Prof. Sérgio, li recentemente um artigo da Judith Butler, no qual ela comentava os protestos contra a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo na França. Simplificando muito, ela dizia que se tem que apoiar o casamento igualitário porque quem o nega fala que homossexuais não seriam dignos do casamento e coisas do gênero, mas via-se muito cuidado dela no apoio ao casamento para não passar a impressão de que o casamento seria a única modalidade legítima de família. No Brasil, temos a discussão dos termos “homoafetividade/heteroafetividade”. Eu talvez seja o maior defensor da pertinência desses termos e lembro que fiquei chocado com a oposição de parte da militância contra ele, que o julgam “higienista” ou que “vincula[ria] direitos humanos a afeto”, não vou aprofundar nisso, mas acho isso um grande mal entendido, pois os termos nunca foram usados dessa forma. Fora que no Brasil criaram-se esses termos, mas o argumento de que “o meu amor vale tanto quanto o seu” é mundial, sempre foi usado pela militância dos EUA, por exemplo, para justificar o casamento homoafetivo – e embora no passado o afeto tenha sido colocado em segundo plano no casamento, ele sempre esteve presente no imaginário, nos desejos expressos por personagens de romances etc [e constitui a base do casamento contemporâneo, tanto que se fala desde sempre em “affectio maritalis”, afeto conjugal, para se falar da “sociedade conjugal”]. O Roger Raupp Rios falou aqui, em Congresso anterior, do perigo de termos um “incorporacionismo familista” na questão dos direitos sexuais, no que obviamente está certo, mas eu já falei para ele que é um mal entendido ele falar isso na crítica à valorização do afeto nas discussões das uniões homoafetivas no Brasil: nos EUA, paradigma dele em um outro debate, a homossexualidade era criminalizada, então lá tiveram que lutar pelo direito à liberdade individual primeiro; no Brasil ela nunca foi crime, então a discussão jurídica começou mesmo no âmbito do Direito das Famílias, no final da década de 1990, no contexto da união estável, que é uma união conjugal “sem papel passado”, e nele(a) o afeto é de grande relevância. Família supõe afeto, ao menos nos últimos tempos, por isso se destacar que a união entre pessoas do mesmo sexo tem o mesmo afeto que a união entre pessoas de sexos opostos. Nunca se limitou direitos humanos a afeto, mas a afetividade é parte inerente da família conjugal: mantém-se uma família apenas enquanto houver afeto, ele é um dos elementos a ser considerado [no mínimo a família contemporânea, dita “eudemonista”, que se justifica apenas se trouxer felicidade e satisfação individual a cada um de seus integrantes]. Fora que não há “higienismo” porque as relações sexuais casuais, não-conjugais etc, estão protegidas pelo direito à liberdade, mas o Direito das Famílias contemporâneo tem na afetividade um elemento determinante, a jurisprudência [brasileira] percebeu isso nos últimos tempos; da mesma forma que “homossexual/heterossexual” não afasta a afetividade potencial da pessoa, “homoafetivo/heteroafetivo” não afasta a sexualidade em sentido amplo [há uma leitura muito restritiva do termo por seus críticos, que eles não fazem com “homossexual/heterossexual”]. É um debate que precisamos aprofundar e já falei isso ao Roger, mas o que queria te perguntar é o seguinte: como você acha que podemos compatibilizar a luta pela igualdade no casamento civil sem que isso implique um “higienismo”, uma defesa do casamento como única forma “legítima” (ou a “melhor” forma) de união sexual? Como a luta pela igual valorização do afeto homoafetivo relativamente ao heteroafetivo pode ser feita sem esse problema?

Resposta (Sérgio Carrara): Essa é uma questão complexa. De um lado parece estranho defender o casamento heterossexual porque há afeto. Claro, há uma estratégia aí. O casamento é um direito, na história do casamento o afeto entrou muito recentemente nessa coisa. Havia alianças políticas, dinásticas etc. Interessante é a retórica que justificou no Brasil. No Brasil havia muito mais o direito igualitário: se há casamento, há para todos. Não sou crítico dos termos, temos que trabalhar no sentido de “des-heterossexualizador” de tudo, logo, também do casamento, há posições que vão focar na propriedade, que seria uma bandeira burguesa, o que acho complicadíssimo: acho que se pesquisarmos quem casa homoafetivamente, veremos bem mais pessoas de classes populares, ele abre acesso a direitos a quem precisa, sou totalmente favorável, acho que seria importante uma discussão sobre o próprio casamento. Conversei com Roger, se é possível ter uma lei de sucessão, de família, que não inclua a lei de casamento, uma lei de filiação, direitos etc, mas separado da questão do casamento. Nos perguntar se é um contrato, hoje só há dois ou três modelos, [procurar] uma individualização mais completa, estabelecendo quantas pessoas se quer, dividindo o que etc, como isso vai acontecer. Isso é um horizonte a ser discutido, toda lei do casamento supõe uma desigualdade entre os cônjuges, grande parte dos contratos foram pensados para proteção dos contratos a meu ver, pois como partia da ideia que não era um contrato entre iguais, tem que estabelecer um contato modelar, não se deixando ao livre arbítrio dos contratantes, mas o mundo mudou, a posição das mulheres mudou, porque esse contrato não é um contrato flexível, para as pessoas estabelecerem o que querem apenas.

 

Comentário de Dimitri Sales: Paulo, acho admirável a ideia de uso semântico no combate ao preconceito, e nisso o termo homoafetividade tem méritos. Mas, axiologicamente traz o direito um problema, limitando a sexualidade ao afeto.

[COMENTÁRIO/Paulo Iotti: não enfrentou nada do que falei demonstrando inexistir a tal “limitação da sexualidade a afeto”, já que a terminologia nunca foi usada nesse sentido higienista, ao passo que, como visto, o próprio palestrante mencionou que o casamento “diz muito mais respeito à dimensão afetiva, de uma pessoa que ama a outra, construção de laços formados na afetividade”, ao passo que a doutrina sempre fala em “afeto conjugal” (affectio maritalis) ao falar sobre o casamento civil, algo que justifica, a meu ver, a terminologia, ao menos no que tange às “uniões” homoafetivas/heteroafetivas. Desenvolvo amplamente o tema em VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 2ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2013, pp. 52-58 – item “1.1. Homoafetividade/heteroafetividade. Pertinência terminológica“. Pretendo publicar esse tópico sob a forma do artigo, disponível na internet, com acréscimos, o que farei assim que possível]

 

Marcia Rocha. A Dimitri. O que acontece quando falamos da questão do esquecimento, é sem dúvida direito da pessoa, mas nosso direito vai até o do outro, e a partir do momento que a lei que uma ex-prostituta vai casar com evangélico, ela tem que contar, ela tem que contar. Duvido que alguém gostaria de descobrir na noite de núpcias que o parceiro tem HIV. O erro essencial tem a ver com cumplicidade com o direito do próximo. Logo, defender que transexuais não precisam contar fere a isonomia, ou todo mundo tem que contar, ou não conta. Esquecimento é direito da pessoa, acabei de dar entrevista dizendo que pessoas tem direito a não sair do armário, nós temos postura de que basicamente quem defende o esquecimento de uma realidade biológica, física, histórica, defende uma psicose. Acho que a gente tem que ter orgulho de ser quem é e lutar por isso.

[COMENTÁRIO/Paulo Iotti: embora o direito de um termine onde começa o direito do outro, o direito do outro está resguardado pela possibilidade de divórcio. A doutrina familiarista contemporânea aponta que a própria noção de “anulação de casamento” perdeu quase toda sua razão de ser (daí eu falar que suas hipóteses são de duvidosa constitucionalidade, por irrazoabilidade/irracionalidade), já que fazia sentido na época que o divórcio era proibido: nessa época, a anulação era a única hipótese em que a pessoa que incorreu em “erro essencial” pudesse formar uma nova família conjugal com uma outra pessoa; hoje, a pessoa pode simplesmente se divorciar e formar essa nova família. A diferença da anulação para o divórcio é que, na anulação, o cônjuge que ocultou a característica geradora do “erro essencial” não recebe os benefícios patrimoniais do regime de bens do casamento, servindo como uma punição a quem ocultou a informação em questão: ora, sendo a transexualidade algo inerente ao direito fundamental à intimidade da pessoa, que se refere à sua esfera secreta que ela tem a prerrogativa de decidir se conta ou não e somente a quem quiser, ela não pode ser punida por exercitar seu direito à intimidade. Há no máximo direitos em conflito, sendo que obviamente entre um direito fundamental/constitucional e um direito legal/infraconstitucional aquele prevalece. Fora que há a questão de que a essência do casamento civil é o estabelecimento da comunhão plena de vida entre os cônjuges, em um “embaralhamento de vidas e patrimônios” (Maria Berenice Dias) que faz a sociedade vislumbrar o casal como uma família conjugal. Ora, tendo havido comunhão plena de vida, não faz sentido punir aquele que omitiu determinada informação considerada “erro essencial” com a invalidação dos efeitos patrimoniais do casamento a si. Por outro lado, casa-se com alguém por conta de sua personalidade presente, pelo que a pessoa é hoje, que é afinal o que cativou o outro e gerou o interesse no casamento, no estabelecimento da “sociedade conjugal”, não se casa com alguém pelo que foi no passado. Assim, não mencionar a transexualidade não pode ser visto como um erro “essencial”. Ainda que se considere como um “erro” sobre a “identidade” do outro cônjuge, a própria lei exige que o erro seja “essencial”. Afirma-se que “essencial” é aquilo que, “se a pessoa soubesse, não geraria o casamento”. Contudo, esse conceito só pode ser aceito com reservas, do contrário qualquer crença absurda invocada poderia justificar a anulação: levada a extremo, uma pessoa fanática por futebol  poderia pedir a anulação de casamento se descobrisse que seu cônjuge era torcedora de seu time rival no passado, antes de “mudar de time”, ou mesmo por descobrir que a pessoa continua torcedora de seu time rival. Logo, é preciso razoabilidade na análise desse conceito e, por outro lado, é preciso levar em consideração que a Constituição veda preconceitos jurídicos de quaisquer espécies no seu artigo 3º, inciso IV, donde o preconceito não pode ser usado como parâmetro jurídico. Até hoje a jurisprudência anula casamentos entre pessoas de sexos opostos se um dos cônjuges omitiu a sua bissexualidade ou por ter tido práticas homossexuais anteriores do casamento (não falo aqui de traições, de adultérios, fatos posteriores ao casamento, mas de práticas homossexuais anteriores ao casamento), o que é um absurdo preconceito que também não pode ser tolerado. Por outro lado, o argumento da isonomia também não se sustenta. Marcia entende que a invocação do direito ao esquecimento instituiria um “privilégio” a transexuais, entendendo que a lei tem que ser cumprida a todos. Contudo, essa parece uma compreensão puramente formal da isonomia, ignorando que a igualdade material/substancial significa tratar desigualmente os desiguais, algo bem expressado por Boaventura de Souza Santos ao dizer que temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, e diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. Transexuais encontram-se em situação desigual relativamente às pessoas em geral: é inimaginável o forte sofrimento subjetivo que sofrem por terem a genuína convicção de que “nasceram no corpo errado” e são notórios os constrangimentos e humilhações que sofrem por conta do preconceito transfóbico ainda socialmente vigente, o que torna absolutamente injustificável que se exija que a pessoa transexual revele sua transexualidade caso ela não o queira. A identidade de gênero transgênera é um fator de desigualação que justifica eventual tratamento diferenciado com base no direito ao esquecimento, que entendo implícito ao direito fundamental à intimidade. Nem se diga a falta de capacidade procriativa da pessoa transexual operada: a doutrina é pacífica no sentido de que a infertilidade não é causa de anulação do casamento, por não ser a capacidade procriativa algo “essencial” ao casamento. Igualmente inadmissível que se anule o casamento por falta de virgindade da mulher. O Código Civil de 1916 previa uma tal hipótese, que hoje certamente seria declarada inconstitucional (não-recepcionada pela Constituição). Nem mesmo crenças religiosas devem isto justificar. Em 2006, um Tribunal Francês anulou o casamento porque um homem muçulmano, religioso fervoroso, conheceu uma mulher e exigia que ela fosse virgem, por conta das suas crenças religiosas, e descobriu na noite de núpcias que ela não o era (exatamente o que previa o Código Civil de 1916…). O Tribunal, sem fazer menção a questões religiosas, disse que teria havido “violação de contrato” já que o homem em questão se casou com a mulher “depois dela ter se apresentado como virgem e casta”[2]. Ora, como se a mulher fosse uma “coisa” passível de ter a si imputados “defeitos” e pudesse ser “trocada” ou “devolvida” como se de Direito das Obrigações estivéssemos a tratar… Enfim, o tema da anulação do casamento merece sérias reflexões, tanto sobre sua duvidosa constitucionalidade no mundo contemporâneo, quanto por uma análise não-preconceituosa do tema.

 

[1] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. União estável poliafetiva: breves considerações acerca de sua constitucionalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3395, 17 out 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22830&gt;. Acesso em: 22 abr. 2014.

[2] Cf. http://www.baguete.com.br/colunistas/colunas/31/janer-cristaldo/16/06/2008/o-himen-complacente-da-velha-europa(último acesso em 17.04.14); http://queremosfalarde.blogspot.com.br/2008/10/frana-um-estado-laico.html (idem); http://canaca.wordpress.com/2008/06/03/a-franca-e-a-noiva-que-nao-era-virgem/ (idem).

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