Já houve algumas respostas ao desrespeitoso e absurdo artigo escrito por J.R. Guzzo (“Parada gay, cabra e espinafre”), o qual, entre outros impropérios, comparou a relação conjugal homoafetiva com uma “relação” de uma pessoa com uma cabra (links de algumas delas no final desta). A meu ver, trata-se de um artigo que se pauta em um misto de simplismos acríticos e ignorâncias que me parece inacreditável ter que escrever uma resposta, mas, como se tem dito, uma revista que (neste caso, lamentavelmente) tem quase nove milhões de leitores, é salutar fazê-lo.
Creio que a principal contribuição desta manifestação relativamente às demais se refere a uma refutação ao argumento de Guzzo de que “o casamento, por lei, é a união entre um homem e uma mulher; não pode ser outra coisa” (sic). Confesso que já ando meio cansado de refutar esse argumento tolo no meio jurídico, já que qualquer primeiro anista de Direito tem a obrigação de saber que o fato ´de a lei regulamentar uma situação sem nada dispor sobre outra, reconhecendo-a ou proibindo-a, não significa uma “proibição implícita” a esta, mas uma lacuna normativa colmatável por interpretação extensiva ou analogia caso as situações sejam idênticas ou equivalentes, respectivamente. Traduzindo: a lei falar que o casamento se realiza quando o homem e a mulher comparecem perante o juiz não significa que a lei teria proibido o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas apenas que regulamentou o casamento heteroafetivo sem proibir o casamento homoafetivo, que pode ser reconhecido por interpretação extensiva ou analogia já que a união homoafetiva forma uma família conjugal da mesma forma que a união heteroafetiva. É isso o que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu no julgamento do Recurso Especial 1.183.378/RS, algo reconhecido também por diversas outras decisões judiciais desde a histórica decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277 em maio/2011 – aliás, se Guzzo estivesse “certo”, o STF não teria proferido a decisão que proferiu, já que o mesmo argumento era usado por juristas contrários ao reconhecimento da união estável homoafetiva… juristas estes que aparentemente ignoravam/ignoram a citada lição de primeiro ano de Direito ao defenderem este absurdo, já que a analogia e a interpretação extensiva existem desde sempre para alargar a previsão legal para nela incluir uma situação que não se encontra expressa no seu texto, como consequência do princípio da igualdade para se tratar igualmente situações idênticas ou equivalentes… sobre isso já escrevi diversas vezes, não cabe aqui me alongar ainda mais neste tema.
Por outro lado, ainda que assim não fosse e a lei realmente “limitasse” (não limita) o casamento civil “apenas” a casais de sexos opostos, então absolutamente legítima seria a pressão para a alteração da lei e da Constituição – pressão esta feita atualmente pelo Deputado Jean Wyllys para fins de deixar esse direito expresso na Constituição apenas para que não haja mais controvérsias jurídicas sobre o tema, bem como pelo fato de que não existe plena “igualdade” se for exigido que a pessoa que a pleiteia tenha que contratar advogado e ingressar em uma batalha judicial para garantir o direito em questão… É absurda a fala de que o casamento defendido por Guzzo “não pode[ria] ser outra coisa”; diversas vezes o casamento deixou de ser “uma coisa” para se tornar “outra coisa”: nos países ocidentais, o homem deixou de ser considerado o “chefe da sociedade conjugal”, a mulher deixou de se tornar “relativamente incapaz” com o casamento, a mulher deixou de ser vendida ao homem por intermédio do “dote”, o casamento inter-racial deixou de ser proibido e criminalizado nos EUA, o divórcio deixou de ser proibido e, depois, o divórcio sem imputação de culpa e sem prévia exigência de “separação judicial” (uma espécie de “estágio probatório” do fim da relação conjugal) passou a ser permitido… logo, absurdamente reacionária a fala de que o casamento “não pode[ria] ser outra coisa” que não aquela prevista hoje na legislação – não só pode como deve quando a alteração é necessária para acabar com uma discriminação e/ou opressão histórica, como a discriminação existente contra casais homoafetivos pela negativa de acesso a seu direito ao casamento…
A afirmação de que LGBTs estariam a querer ser tratados “como uma categoria diferente de cidadãos” (sic) é outro simplismo acrítico. Primeiro, a luta pelo acesso ao casamento civil igualitário significa, como bem dito por Jean Wyllys em sua réplica a Guzzo, um pleito para deixarmos de sermos considerados uma casta arbitrariamente excluída da igualdade de direitos e dignidade que somente o acesso ao casamento civil garante. Nem se venha com a falácia da “união civil”, pois como sempre destaco, é precisa a frase da Suprema Corte do Canadá segundo a qual negar o acesso de casais homoafetivos ao casamento civil para relega-los a uma união civil paralela implica em passar a sinistra mensagem de que eles não seriam merecedores do casamento civil… Segundo, o pleito pela criminalização da homofobia e da transfobia decorre do fato de que estamos vivendo verdadeira banalidade do mal homofóbico pela quantidade de atos de discriminação, ofensa e assassinato cometidos contra pessoas LGBT por sua mera orientação sexual ou identidade de gênero, ante os homofóbicos estarem se achando detentores de um pseudo “direito” de ofender, agredir, discriminar e mesmo matar LGBTs por sua mera orientação sexual ou identidade de gênero… Se não for má-fé, Guzzo incorreu em novo simplismo acrítico ao comparar os aproximadamente 300 assassinatos contra homossexuais com os 50.000 homicídios em geral do ano de 2010, pois aqueles 300 se referem unicamente a crimes de ódio, motivados unicamente na orientação sexual ou identidade de gênero da vítima LGBT, estatística esta que não inclui os homicídios cometidos contra homossexuais por motivos outros que não a homofobia e aqueles cometidos contra travestis e transexuais que não por transfobia… Heterossexuais não são agredidos, ofendidos, ameaçados, discriminados e/ou mortos por sua mera heterossexualidade; por outro lado, homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais o são por sua mera homossexualidade, bissexualidade, travestilidade e transexualidade… Nesse sentido, comparar o desgosto a espinafre com o desprezo a pessoas LGBT (!?!) é algo que transcende o absurdo, é ofensivo à dignidade destas… comparar crimes de ódio com gostos alimentares é algo simplesmente inacreditável, na melhor das hipóteses, um simplismo acrítico imperdoável…
O que dizer, então, do “ponto alto” do artigo de Guzzo: sua comparação da relação conjugal homoafetiva com a “relação” que um homem pode ter com a sua cabra??? Eu gostaria de saber que espécie de “relação” poderia haver entre casamento homoafetivo e relações sexuais entre humanos e animais… Como também disse Jean Wyllys, “O que ele, Guzzo, chama de ‘relacionamento’ com sua cabra é uma fantasia, pois falta o intersubjetivo, a reciprocidade que, no amor e no sexo, só é possível com outro ser humano adulto”. Isso é de tamanha obviedade que é inacreditável que tenha que ser dito: o Direito Matrimonial regula a conjugalidade humana, não relações sexuais entre humanos e animais… trata-se de comparação absolutamente ofensiva caracterizadora de dano moral coletivo contra a comunidade homossexual…
Guzzo talvez argumente que ele “quis dizer” que da mesma forma que a lei proíbe o casamento em algumas hipóteses, ela poderia proibir também o casamento homoafetivo, mas aqui teríamos dois problemas: primeiro, como já explicitado, a lei não proíbe o casamento homoafetivo, limitando-se a regulamentar o heteroafetivo, donde cabível aquele por interpretação extensiva ou analogia; segundo, a lei não pode criar proibições arbitrárias – se elas forem arbitrárias, serão inconstitucionais por violação da isonomia ou da razoabilidade conforme o caso. Já superamos o “mito do legislador racional”, segundo o qual ele “nunca erra” porque (aparentemente) “tudo pode e tudo vê” e pode fazer o que bem entender… ou a restrição é racionalmente justificável ou será inconstitucional. Mínimos conhecimentos de Direito Constitucional e Supremacia Constitucional sobre a legislação ordinária deixam isso claro… e não se venha tentar “racionalizar” a proibição com o argumento de Guzzo de que casais homoafetivos não podem ter filhos, pois casais heteroafetivos estéreis (idosos etc) também não podem e nem por isso deixam de ser reconhecidos como famílias nem têm seu acesso ao casamento civil negado por isso, como a coerência exigiria se a capacidade procriativa realmente fosse “necessária” para o reconhecimento de uma união amorosa como família conjugal… Na lição de Paulo Lôbo, a família conjugal existe em uma união pautada pela afetividade, ostensibilidade e publicidade, ao que Rodrigo da Cunha Pereira acrescenta a estruturação psíquica, ou seja, a identificação recíproca como uma família, donde eu defender (também por outros fundamentos) em meu Manual da Homoafetividade que a família se forma pelo amor familiar, o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura – amor romântico/conjugal, no caso de uma família conjugal (amor fraterno para uniões não-sexuais).
Outrossim, as demais comparações não se sustentam. Concorde-se ou não com elas, as proibições ao casamento com familiares têm objetivos específicos que não se confundem com o não-reconhecimento do casamento homoafetivo. Nas relações heteroafetivas, visa-se evitar as doenças genéticas que notoriamente ocorrem em número exponencialmente maior em relações consanguíneas. Por outro lado, pode-se querer evitar que a família de sangue seja abalada pelas inconstâncias das relações conjugais. Mas ainda que eventualmente se venha a entender que tais questões não seriam suficientes para se proibir o reconhecimento de tais uniões como famílias conjugais (nos EUA, há relatos de relações conjugais heteroafetivas de filhos frutos de inseminação artificial com seus pais biológicos quando efetivamente os conhecem), fato é que tais racionalizações não se aplicam às uniões homoafetivas não-consanguíneas. A comparação é, novamente, descabida… Logo, não se aplica o pressuposto de Guzzo de que haveria proibições/limitações aplicáveis “a todos”, donde homossexuais não teriam que reclamar – afinal, o não-reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo afetam somente homossexuais e eventualmente bissexuais, nunca heterossexuais, donde não se trataria de uma “limitação” a “todos”, mas uma discriminação especificamente voltada a casais homoafetivos
Sobre a doação de sangue, simplória a alegação de que não se trata de “direito ilimitado”, pois fato é que proibir “homens que façam sexo com outros homens (HSHs) nos últimos doze meses” de doar sangue independentemente de sua conduta sexual concreta (ou seja, mesmo que pratiquem apenas sexo seguro – com preservativo – e mesmo em uma relação monogâmica) implica em efetivamente classificar tais pessoas como um “grupo de risco”, conceito este absolutamente superado pela ciência médica. A ANVISA tanto sabe disso que foge dele como o diabo da cruz, dizendo que adota o conceito de “situação de risco acrescida”, ou seja, que independente do grupo que a pessoa faça parte, o que importa são condutas concretas de risco e nada mais, contudo, como dito, dizer que HSHs estariam “necessariamente” em uma situação de risco acrescida pelo simples fato de terem feito sexo com outro homem, independente se sexo seguro e/ou em relações monogâmicas, implica em classifica-los como verdadeiro “grupo de risco”, violando o próprio conceito de “situação de risco acrescida” neste caso (claro que HSHs se submetem aos demais filtros da ANVISA, donde se este deixar de existir, os outros não deixarão de existir automaticamente; cada caso é um caso). Logo, a posição da ANVISA (e de outros países de situações análogas ou mais rigorosas) é absolutamente preconceituosa e, portanto, inconstitucional.
Sobre a reclamação de que “qualquer” artigo que critique homossexuais seria chamado de homofóbico implica um curioso paradoxo: Guzzo quer o direito de criticar homossexuais a todo momento, mas reclama de quem, por discordar de sua crítica e considerar a crítica homofóbica, exponha essa opinião crítica… isso é inacreditavelmente difundido na atualidade: pessoas querem ter a si reconhecido o direito de criticar, mas se ofendem quando outros criticam suas críticas e as consideram preconceituosas… cabe aqui lembrar que, como é corrente no Direito Constitucional contemporâneo, nenhum direito é absoluto, logo, a liberdade de expressão também não o é… nesse sentido, como tenho dito nos últimos anos em debates informais em geral (virtuais etc), a liberdade de expressão não garante um pseudo direito a discursos de ódio, a ofensas, a incitações ao preconceito e/ou à discriminação, pois, sendo a liberdade o direito de se fazer o que se quiser desde que não se prejudique terceiros (e isso desde a célebre “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” pós-Revolução Francesa) e sendo estes discursos prejudiciais a suas vítimas, eles não estão no âmbito de proteção da liberdade de expressão. Podemos discutir se um texto ultrapassa ou não os limites da liberdade de expressão, mas não se pode discutir que ela tem limites – ainda que se considere que eles seriam outros que não o aqui exposto). Lembre-se que o STF já declarou que a liberdade de expressão não garante direito a discursos racistas nem a injúrias/ofensas (HC 82.424/RS), oportunidade na qual o Ministro Celso de Mello afirmou que os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana são limites externos à liberdade de expressão. Ofensas puras e simples e comparações ofensivas, portanto, não são protegidas pelo direito fundamental à liberdade de expressão – são, quando muito, como bem diz o caríssimo Alexandre Bahia, um “abuso de direito”, e abusos de direito são desde sempre reprimidos pelo Direito. Lembre-se, ainda, que as pessoas podem simplesmente dizer que consideram um artigo preconceituoso se assim o considerarem, ainda que isso não seja considerado suficiente para caracterizar alguma ilicitude…
Por fim, as críticas ao movimento LGBT igualmente não se sustentam. O movimento, que ao contrário do que Guzzo sustenta efetivamente existe, reúne pessoas que visam o fim da discriminação pautada na orientação sexual e na identidade de gênero (real ou presumida – lembre-se do pai e filho agredidos por confundidos com um casal homoafetivo apenas por estarem abraçados…). Para citar apenas alguns exemplos: ao exigir o respeito ao nome social de travestis e transexuais, que se permita que elas usem o banheiro coerente com sua identidade de gênero (imagine uma figura feminina usando um banheiro masculino, o risco de agressão a que ela estaria sujeita) e que as escolas coíbam a homofobia e a transfobia ensinando que pessoas LGBT merecem igual respeito e consideração relativamente a heterossexuais cisgêneros (que se identificam com o gênero socialmente atribuído a seu sexo biológico), o movimento luta apenas pelo fim da discriminação homofóbica/transfóbica, por igualdade de direitos, na linha do “nem mais, nem menos”. Só pessoas reacionárias que querem manter o status quo heterossexista (que discrimina quem não é heterossexual cisgênero) pode se insurgir sobre isso – e, sobre o kit escola sem homofobia (e não “kit gay”), primeiramente, é de uma profunda má-vontade interpretativa ver o vídeo do menino bissexual como “apologia” à homossexualidade, pois o vídeo relata o processo pelo qual o menino descobre ter desejo tanto por meninos quanto por meninas e, quando se aceita, diz que não há problema nisso e que, ao contrário, ele terá mais chances de encontrar alguém par a se relacionar (uma fala evitável, mas muito longe de ser caracterizadora de uma “propaganda de opção sexual” [sic], como a Presidenta da República inacreditavelmente disse – quando demonstrou que não entende nada de sexualidade ao dizer que ela decorreria de uma “opção”, visto ser notório/evidente que ninguém escolhe ser homo, hétero ou bissexual, simplesmente se descobrindo de uma forma ou de outra, além de ser uma fala incoerente na medida em que os programas sociais que mostram a imagem de um pai, uma mãe e um ou dois filhos, pelo raciocínio dela, implicariam em “propaganda da orientação sexual” heteroafetiva…); mas, em segundo lugar, o kit escola sem homofobia, aprovado pela UNESCO e pelo Conselho Federal de Psicologia, não se limita àquele vídeo como o discurso de Guzzo (e outros) pode induzir a acreditar… havia materiais educativos que ficariam à disposição de professores (não seriam entregues diretamente aos alunos) para que eles introduzissem o tema da forma que julgassem (junto com a escola) mais conveniente… Logo, descabido o artigo também neste ponto…
Enfim… como em geral as coisas na vida não são totalmente boas ou (neste caso) totalmente ruins, penso que o artigo de Guzzo precise ser enquadrado (!??!) para que tenha uma consequência positiva no futuro (!??!), a saber, servir como exemplo histórico de um posicionamento reacionário contra as demandas por igualdade de direitos e igual proteção penal de uma população historicamente oprimida e, ainda, como exemplo histórico de péssimo jornalismo…
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru (ITE/Bauru), Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Advogado, Autor do Livro “Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos”, Co-autor dos livros “Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo” (organizado por Maria Berenice Dias) e “Minorias Sexuais. Direitos e Preconceitos” (organizado por Tereza Rodrigues Vieira). Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual.
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Links de outras respostas:
Jean Wyllys: http://jeanwyllys.com.br/wp/veja-que-lixo
Lucas Rezende: https://www.facebook.com/lucas.rezende.75098/posts/10151180309449823
Blog Cem Homens (Letícia F): http://cemhomens.com/2012/11/o-casorio-da-cabra/