Segue a íntegra de minha sustentação oral no julgamento realizado pelo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, relativamente a recurso interposto contra decisão que negou a conversão de união estável homoafetiva em casamento civil (recurso provido, por unanimidade!), com pequenas adequações para adaptá-la a um texto escrito e não uma fala direcionada a desembargadores (ao passo que os trechos entre colchetes e em notas de rodapé não foram mencionados na sustentação oral por impossibilidade de fazê-lo junto com os demais argumentos em quinze minutos)
Sustentação Oral
Conversão de União Estável Homoafetiva em Casamento Civil
Tribunal de Justiça de São Paulo
O presente recurso[1] se insurge contra decisão que negou a conversão de união estável homoafetiva em casamento civil. Alegou a Nobre Juíza de 1o Grau, em síntese, que a decisão do STF na ADPF n.º 132 e na ADI n.º 4277, que reconheceu a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, seria suficiente para garantir igualdade de direitos entre casais homoafetivos relativamente aos heteroafetivos, donde [supostamente] resolvida a questão da isonomia; que a lei não reconhece expressamente o direito ao casamento civil homoafetivo; e que não caberia ao juiz “instituir ou alargar” previsão legal a situação não-normatizada. Contudo, equivoca-se gravemente a Nobre Juíza em todos os pontos.
Primeiramente, analisemos a decisão do STF. A parte dispositiva do julgado, que tem efeito vinculante e eficácia erga omnes e não pode, portanto, ser desrespeitada, reconheceu a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva e afirmou que tal “Reconhecimento é de ser feito segundo as mesmas regras e as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”. Ora, sendo uma das consequências da união estável a possibilidade de conversão em casamento civil, então tem-se que o efeito vinculante da decisão do STF torna obrigatório o provimento do presente recurso. Afinal, como bem dito pela Nobre Juíza Junia de Souza Antunes, de Brasília, ao converter união estável homoafetiva em casamento civil e que me honrou com citação de artigo de minha autoria sobre a ausência de fundamentação válida ante a isonomia para negar o casamento civil a casais homoafetivos, a união estável é um instituto uno, não havendo uma união estável “homoafetiva” e uma “heteroafetiva” no sentido de conseqüências jurídicas distintas, donde ambas podem ser convertidas em casamento civil porque ambas formam uma união estável e esta é uma das consequências da união estável. Eis, assim, o argumento formal decorrente da decisão do Supremo: união estável, homoafetiva ou heteroafetiva, pode ser convertida em casamento civil.
Mas em seu próprio mérito a Respeitável Decisão recorrida merece reforma.
Primeiramente, a união estável não garante os mesmos direitos do casamento civil – na sucessão o cônjuge herda mais que o companheiro. Mas mesmo que houvesse absoluta igualdade de direitos, a união estável não garante as mesmas facilidades do casamento civil. No casamento, a certidão de casamento constitui prova com presunção absoluta de que o casal forma uma família conjugal e garante, por si, todos os direitos daí decorrentes, como inclusão de dependente em planos de saúde, de seguros, de clubes, do INSS, do Imposto de Renda etc; já na união estável, como a lei não estabelece essa força a documento nenhum, cada empresa exige aquilo que julga necessário para a prova da união estável – no INSS, por exemplo, se você apresenta uma declaração notarial de união estável feita no ano passado dizendo que ela prova sua união estável para pedir a pensão pelo falecimento do seu companheiro, ele responde que ela prova que vocês estavam em união estável no ano passado, não no momento do falecimento, fazendo surgir todo um contencioso administrativo e possivelmente judicial sobre o tema. Logo, não há igualdade entre união estável e casamento civil por este garantir mais direitos e mais segurança jurídica à família conjugal do que aquela, donde equivocada a decisão recorrida[2].
Sobre a ausência de previsão legal, a Nobre Juíza inverte a lógica da possibilidade jurídica do pedido, pois, consoante jurisprudência pacífica do STJ, possibilidade jurídica do pedido existe quando a lei não proíbe expressamente o pedido, não somente quando a lei expressamente o permite, donde juridicamente impossível é somente o pedido expressamente proibido e não aquele não previsto na letra da lei. Por essa lógica o STJ consolidou sua jurisprudência sobre a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por analogia – REsp n.º 820.475/RJ e REsp n.º 827.962 [por exemplo]. Aliás, no paradigmático REsp n.º 1.183.378/RJ, no qual o STJ reconheceu o direito de um casal mulheres se casarem e do qual tive a honra de participar também por sustentação oral, o recurso foi conhecido e provido por afronta ao art. 1.521 do Código Civil, o artigo sobre os impedimentos matrimoniais, no sentido de que o caráter taxativo dos impedimentos matrimoniais significa que a ausência de proibição do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo o torna permitido. O relator, Ministro Salomão, foi expresso ao dizer que os dispositivos legais respectivos se limitam a regulamentar o casamento civil entre pessoas de sexos opostos sem, contudo, proibir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Afinal, dizer, como faz o art. 1.514 do Código Civil, que o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher declaram perante o juiz a vontade de estabelecer o vínculo conjugal é diferente de dizer que o casamento se realiza “apenas entre um homem e uma mulher” – este “apenas” não está escrito e se não está escrito não há limites semânticos no texto que impeçam a exegese analógica aqui pretendida.
Assim, a possibilidade jurídica do pedido decorrente da ausência de proibição legal torna viável a perquirição do cabimento de interpretação extensiva ou analogia para se permitir a procedência, no mérito, do pedido casamento civil homoafetivo – interpretação extensiva caso se considere as situações idênticas; analogia caso se considere que, apesar de supostamente “distintas” por termos duas pessoas do mesmo sexo em um caso e duas pessoas de sexos opostos em outro, são idênticas no essencial. E o que é o essencial? Qual o elemento valorativamente protegido, o fato jurígeno, o suporte fático do casamento civil e da união estável? A resposta me parece evidente – é a família conjugal. E o que forma a família conjugal? Em síntese, superada a noção de família hierárquico-patriarcal do Código Civil de 1916, na qual o homem era “hierarquicamente superior” à mulher como “chefe da sociedade conjugal” heteroafetiva, e passando no mundo fático pela chamada família fusional, de fusão, de meados do século XX, que se forma e se mantém unida apenas se houver afeto romântico na relação, culminamos com a chamada família eudemonista – “eudemonista” é uma palavra de raiz grega que significa “felicidade”, a família conjugal que se forma e se mantém unida apenas se isso trouxer felicidade/realização pessoal a cada integrante do casal. É por isso que eu defendo no meu Manual da Homoafetividade e nos meus escritos sobre o tema que a família se forma pelo amor familiar, o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura – amor romântico/conjugal no caso da família conjugal – inclusive por interpretação teleológica dos artigos 1.511 e 1.723 do Código Civil – 1.511: o casamento estabelece a comunhão plena de vida entre os cônjuges; 1.723: união estável como união pública, contínua e duradoura com o intuito de constituir família.
Logo, sendo a união homoafetiva uma família conjugal e sendo a família conjugal o elemento valorativamente protegido pelo casamento civil, tem-se que casais homoafetivos devem ter a si reconhecido o direito de acesso ao casamento civil por interpretação extensiva ou analogia, dado que inexiste proibição normativa a tal exegese. Aqui temos um argumento material decorrente da decisão do STF: não faz sentido jurídico nenhum reconhecer a união homoafetiva como família conjugal apenas para fins de união estável e não reconhecê-la como família conjugal para fins de casamento civil – ou um casal forma uma família conjugal e tem direito a ambos ou não a forma e não tem direito a nenhum. Ademais, como dito pelo Ministro Salomão no citado REsp 1.183.378, o casamento civil é o regime jurídico por excelência destinado a garantir a especial proteção devida pelo Estado à família conjugal garantida pelo art. 226 da CF/88 à família conjugal, donde também à família conjugal homoafetiva. [E como dito por outros Ministros, se o STF disse que a expressão “entre o homem e a mulher” não impede o reconhecimento da união estável homoafetiva, com igualdade de razão não impedirá o casamento civil homoafetivo].
Sobre aqueles que invocam a chamada “teoria da inexistência do ato jurídico” que existiu no mundo fático, a qual, em síntese, diz que algumas “proibições” seriam tão “óbvias” que o legislador não precisaria se preocupar em prevê-las expressamente [!][3], cabe notar que dita teoria é flagrantemente inconstitucional por afronta ao art. 5º, inc. II, da Constituição, que diz que ninguém será obrigado a deixar de fazer algo senão em virtude de lei, logo, proibições ou requisitos devem decorrer de texto normativo expresso ou, no mínimo, de norma implícita decorrente de texto normativo, o que inexiste no presente caso. Mas, ainda que se entenda como válida dita “teoria”, tem-se que o entendimento da família conjugal como o elemento valorativamente protegido pelo casamento civil significa que é a família conjugal, formada pelo amor familiar, a “condição de existência” do casamento civil, e não a diversidade de sexos, donde possível também por aqui o casamento civil homoafetivo.
Como visto, tem-se que lições de Direito Civil Clássico justificam o casamento civil homoafetivo por decisão judicial pela lógica da lacuna normativa colmatável por interpretação extensiva ou analogia. Afinal, aplicando aqui as lições sobre colmatação de lacunas, a lei regulamentar o fato heteroafetivo como casamento civil sem nada falar sobre o fato homoafetivo como casamento civil não significa “proibição implícita por interpretação a contrario [sensu]”, mas lacuna normativa colmatável por interpretação extensiva ou analogia. Logo, a menos que se pretenda declarar a inconstitucionalidade da analogia por afronta à separação dos poderes [!], não se pode dizer que o casamento civil homoafetivo por decisão judicial seria um “ativismo judicial inconstitucional”, pois a analogia e a interpretação extensiva estão desde sempre entre as competências do Poder Judiciário… quem considerar isso como ativismo judicial terá que declarar a inconstitucionalidade da interpretação extensiva e da analogia, algo absurdo, até porque elas são decorrências da isonomia no sentido de tratar igualmente os iguais ou fundamentalmente iguais…
Nesse sentido, vamos ao ponto derradeiro da decisão recorrida: como assim não seria possível ao juiz “alargar previsão legal” a situação não normatizada??? Ora, isso é exatamente o que a analogia faz!!! A analogia e a interpretação extensiva existem desde sempre para “alargar previsão legal” a situação não-normatizada, como inclusive citado em voto do citado julgamento do STJ, sendo assim equivocada a fala da Nobre Juíza no sentido de que o juiz não poderia alargar previsão legal…
Entremos agora nos argumentos constitucionais, que comprovam que o casamento civil homoafetivo por decisão judicial, além de justificável por lições de Direito Civil Clássico, é também uma decorrência da aplicação direta das normas constitucionais ao presente caso:
(i) dignidade humana: negar a casais homoafetivos o acesso ao casamento civil significa passar a sinistra mensagem de que eles não seriam tão dignos quanto casais heteroafetivos e que, por isso, não seriam merecedores do casamento civil, que seriam uma família de segunda classe por não terem acesso a ele – é o que disse a Suprema Corte de Ontário/Canadá ao reconhecer judicialmente tal direito;
(ii) proporcionalidade: a proteção da família conjugal heteroafetiva não se beneficia em nada da proibição do casamento civil homoafetivo [não havendo assim sequer o que ponderar contra o direito ao casamento civil homoafetivo], pois como bem dito pelo Ministro Ayres Britto, “não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham”, donde tal proibição é inadequada, desnecessária e desproporcional em sentido estrito para tal fim, ao passo que o reconhecimento do casamento civil homoafetivo é medida adequada, necessária e proporcional em sentido estrito para garantir a igualdade de direitos e a igual dignidade jurídica, o igual respeito e consideração das uniões homoafetivas relativamente às heteroafetivas;
(iii) isonomia: ausência de fundamento lógico-racional que justifique a discriminação de casais homoafetivos relativamente a heteroafetivos pela negativa do casamento civil àqueles. No mundo inteiro são sempre os mesmos argumentos usados contra o casamento civil homoafetivo: procriação: casais heteroafetivos estéreis, que não possuem capacidade procriativa, não são impedidos de se casar [idosos estéreis também não e casais que não têm filhos não têm seus casamentos anulados por ação do Ministério Público], logo, o argumento improcede – capacidade procriativa não é critério, o critério é a família conjugal; religião: o Estado é Laico, art. 19, inc. I, da CF/88, são vedadas relações de aliança ou dependência com religiões e usar fundamentações religiosas para justificar decisões jurídicas implica em “aliança” do Estado-juiz com a religião em questão, o que é expressamente vedado por tal dispositivo constitucional[4], até porque a liberdade religiosa garante o direito de não ser influenciado pela religião alheia consoante lição de Canotilho [e Vital Moreira]; vontade da maioria: é da essência do constitucionalismo que a maioria também é limitada pelos direitos fundamentais, como a isonomia, a dignidade e a proporcionalidade – democracia não é ditadura da maioria, democracia é regime jurídico de defesa dos direitos fundamentais, consoante lição de José Afonso da Silva, na qual a maioria governa e define os rumos da nação desde que não discrimine a minoria; [Luís Roberto] Barroso tem uma frase fantástica a respeito: não é porque há oito católicos e dois muçulmanos numa sala que o primeiro grupo pode deliberar jogar o segundo pela janela[5], democracia é muito mais do que a regra da maioria; e acrescento que, sendo a democracia pela definição clássica o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, sendo a minoria parte do “povo”, a democracia também a beneficia, no mínimo no sentido de impedir discriminações arbitrárias contra ela, não podendo a maioria negar à minoria diretos que garante a si, maioria[6]. [criação de filhos, diversas pesquisas psicológicas e sociais já comprovaram que crianças e adolescentes não têm prejuízo nenhum pelo simples fato de serem criadas(os) por casais homoafetivos relativamente àquelas criadas por casais heteroafetivos, entendimento este referendado pela Associação Americana de Psicologia, Associação Americana de Psiquiatria, entre outros].
[Logo, percebe-se que o tema não pode ser deixado ao arbítrio do Parlamento, pois sendo inconstitucional a negativa do casamento civil homoafetivo, deve a jurisdição constitucional garantir tal direito por intermédio de sua função contramajoritária, pela aplicação direta das normas constitucionais ao tema e/ou, no mínimo, por interpretação extensiva ou analogia].
Como se vê, restam demonstrados os equívocos da decisão recorrida, razão pela qual requer-se o provimento do recurso para se converter a união estável homoafetiva dos recorrentes em casamento civil.
[1] Tribunal de Justiça de São Paulo – Conselho Superior da Magistratura, Recurso n.º 0034412-55.2011.8.26.0071.
[2] Aliás, quem cita a decisão do Conselho Constitucional Francês, que se negou a reconhecer o casamento civil homoafetivo por decisão judicial, demonstra que não entendeu a razão de decidir do Conselho Francês. Com efeito, a decisão parte do pressuposto de que não haveria afronta à isonomia na negativa do casamento civil a casais homoafetivos franceses porque, na França, há o chamado “Pacto Civil de Solidariedade”, também disponível a casais homoafetivos, contudo, mesmo assim errou o Conselho Constitucional Francês porque o Pacto Civil de Solidariedade Francês não garante todos os direitos do casamento civil. Ademais, a decisão partiu do pressuposto de que não há afronta à isonomia na negativa do casamento civil homoafetivo, afronta esta que, como vimos, ocorre no presente caso, donde inaplicável o precedente ao contexto normativo brasileiro.
[3] Caio Mário parece ter a fala mais eloquente sobre a suposta “inexistência jurídica” do casamento civil homoafetivo ao dizer que “em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades” o casamento ocorreria “somente” entre homem e a mulher – bem, essa eloquência perdeu sua razão de ser atualmente já que temos diversos países e Estados dos EUA que reconhecem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, logo, a questão não tem a suposta “obviedade” afirmada. Por outro lado, a doutrina não tem o menor pudor de reconhecer o caráter fraudulento dessa “teoria”, no sentido de que ela surgiu na época do Código Napoleônico, que não o proibia e se pautava pela regra segundo a qual não há nulidade sem texto para proibir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, como forma de se burlar essa regra.
[4] Sendo que, como decidido pelo STF na ADIn por Omissão 2.076, a expressão “sob a proteção de Deus” do preâmbulo constitucional não tem significação jurídica, até porque, como dito pelo Ministro Sepúlveda Pertence, não se pode compelir a divindade a cumprir a suposta promessa feita – acrescento: impossibilidade jurídica por impossibilidade fática, bem como concordância prática entre tal expressão preambular com a laicidade estatal.
[5] Cf. http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20090130-01.pdf (p. 9 – último acesso: 01/06/12)
[6] Sendo que meros voluntarismos majoritários não configuram argumentação válida ante a isonomia como reconhecido pela Suprema Corte dos EUA nos casos Romer v. Evans e Lawrence v. Texas, visto que a mera antipatia, o mero animus contrário/negativo contra determinado grupo social não estabelece uma relação racional da discriminação com um legítimo fim estatal.