Divulgo aqui uma Carta Aberta aos Senadores contra o Arquivamento do PLC 122/06, de minha autoria (que contou com valiosas contribuições de Felipe Oliva e André Bocuzzi), na qual destaco a inexistência de qualquer óbice jurídico à aprovação do referido projeto (que visa criminalizar a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero, assim como a discriminação por idade e por condição de pessoa com deficiência, no substitutivo apresentado pela Senadora Fátima Cleide) e, além disso, a necessidade político-social de sua aprovação para o resguardo da cidadania dos cidadãos e das cidadãs LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros).
PLC 122/06
CARTA ABERTA AOS SENADORES CONTRA O ARQUIVAMENTO
Excelentíssimos Senhores Senadores e Excelentíssimas Senhoras Senadoras:
No dia 29/12/2010, foi noticiado no site do Senado que, por estar tramitando no Senado há mais de duas legislaturas, o PLC 122/06 será arquivado, a menos que 1/3 (um terço) dos Senadores requeiram o contrário.
Primeiramente, é preciso frisar que o PLC 122/06 apenas pretende incluir outras minorias no rol da já conhecida Lei contra o Preconceito (Lei 7.716/89), para que também passe a abarcar a discriminação por orientação sexual, identidade de gênero, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Esse projeto de lei objetiva resguardar a cidadania das Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (LGBT) contra a difundida crença de que existe um “direito” de discriminá-los e ofendê-los, como ilustram os recentes ataques a vítimas identificadas como homossexuais, na Avenida Paulista, em São Paulo. Esses casos e outros, como o brutal e desmotivado assassinato de duas travestis, em Curitiba, em dezembro de 2010, apenas comprovam cabalmente a correção do alerta feito anualmente pelo GGB (Grupo Gay da Bahia) sobre o fato de o Brasil ser campeão mundial de homofobia, pelo enorme número de assassinatos cometidos em razão de ódio homofóbico.
Estamos falando de crimes que não podem ser acriticamente contabilizados como crimes comuns; trata-se de crimes fundados no ódio totalitário de pessoas que desprezam, agridem e assassinam outras pelo simples fato de estas serem diferentes.
Toda lei tem um efeito simbólico inerente, mas o PLC 122/06 não se enquadra no que os criminalistas chamam pejorativamente de “leis penais puramente simbólicas”; esse projeto de lei se enquadra, sim, nos ditames da teoria constitucional do “Direito Penal Mínimo”, por buscar resguardar um bem jurídico da mais alta relevância da vida social e que não tem conseguido ser resguardado pelos outros ramos do Direito – o direito à tolerância, ou seja, o direito de não ser agredido, ofendido, discriminado ou assassinado pelo simples fato de ser diferente. A criminalização é necessária, ainda, por todos os mecanismos alternativos não terem se provado eficazes. Os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul têm Leis Estaduais Antidiscriminação (nº 10.948/2001, 3.406/2001, 14.170/2002 e 11.872/2002, respectivamente), que punem administrativamente atos de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero com advertências, multas, suspensões e cassações de licenças de funcionamento de estabelecimentos comerciais. Essas leis, porém, não impediram que um agente do próprio Estado baleasse um jovem de 19 anos logo após a Parada Gay no Rio, em 15/11/2010, dia em que a própria República era celebrada.
Note-se que a lei não afronta a taxatividade criminal, na medida em que os conceitos normativos trazidos pelo projeto são de fácil compreensão, pois toda e qualquer pessoa sabe o que é uma ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória. Aliás, é evidente que o “constrangimento” a ser punido é aquele considerado “ilegal”, na linha do tipo penal já existente, donde um “constrangimento” causado por um debate respeitoso, não-pautado por discursos de ódio, não configurará crime com a aprovação do PLC 122/06.
Sobre a constitucionalidade do PLC 122/06, cabe lembrar a matéria da Folha de São Paulo de 22/12/2010, que trouxe a opinião de renomados constitucionalistas sobre o tema (Virgilio Afonso da Silva, Conrado Hübner Mendes, Octavio Luiz Motta Ferraz, Ives Gandra da Silva Martins, Marco Aurélio Mello e outro Ministro do STF, que falou em caráter reservado). Segundo esses especialistas, o referido projeto concretiza o disposto nos artigos 3º e 5º da Constituição Federal, que determinam o combate à discriminação e ao preconceito em nosso País, e não afronta a liberdade de expressão pois, nas palavras do Ministro Marco Aurélio Mello,“a liberdade de expressão não pode chegar ao ponto de menosprezar a dignidade, gerando cidadãos de segunda classe“.
Assim, considerando que certas pessoas se julgam, inacreditavelmente, no “direito” de discriminar, ofender e agredir, tem-se que o PLC 122/06 é um mecanismo indispensável para a preservação da cidadania das minorias.
Evidenciada a premência da aprovação desse Projeto de Lei, soa temerário seu arquivamento pelo Senado. O PLC 122/06 chegou àquela Casa no final do ano de 2006; compreendendo a legislatura o período de quatro anos, tem-se que a melhor exegese do dispositivo regimental é aquela segundo a qual o projeto precisa estar tramitando há mais de oito anos para ser arquivado, não se podendo contar como “uma legislatura”, para fins de arquivamento, o período existente entre a entrada do projeto de lei da Câmara no Senado e o final daquela legislatura.
De qualquer forma, deve-se destacar que o projeto apenas deixou de ser levado para votação e aprovação no Congresso Nacional por oposição de grupos fundamentalistas, que deturpam seu real significado. Os detratores do PLC 122/06 se pautam por uma profunda ignorância ou pela mais pura e genuína má-fé argumentativa, na medida em que o projeto apenas punirá a discriminação e a violência arbitrárias, as mesmas hoje punidas se cometidas contra negros por sua cor de pele, contra grupos étnicos por sua etnia, contra estrangeiros por sua condição de estrangeiros e – frise-se – contra religiosos por sua religião. Como parlamentares religiosos podem negar estender às LGBT, aos idosos e aos portadores de deficiência a proteção de que eles mesmos já gozam?
Considerar “ditatorial” um projeto de lei que pretende evitar atos arbitrários/ilícitos/inconstitucionais de discriminação, constrangimento, intimidação, vexame, ofensa, agressão e assassinato é algo que desafia a inteligência de pessoas com mínimas compreensões do maior dos pressupostos da vida em sociedade, a saber, o dever de tolerância, entendido como o dever de não discriminar, ofender ou agredir alguém pelo simples fato de ser diferente…
Ao contrário do que defendem os fundamentalistas opositores do PLC 122/06, o mesmo não atentará contra a liberdade religiosa, uma vez que continuará sendo lícito a ministros religiosos pregarem que a homossexualidade seria um “pecado”, pois esta é uma exegese possível da bíblia (embora, particularmente, a consideremos incorreta, seja pela interpretação histórico-crítica mostrar que a bíblia não condena a homossexualidade, mas condutas a ela descabidamente associadas, seja por diversos outros pecados bíblicos terem caído em absoluto desuso).
Deve-se notar que pregar respeitosamente que a conduta homossexual seria um “pecado” é uma coisa, mas outra bem diferente é proferir discursos de ódio segundo os quais homossexuais seriam inerentemente promíscuos, incapazes de alcançar o amor genuíno, que a adoção por casais homoafetivos seria uma “agressão” ao menor, e outros impropérios e estereótipos do gênero, que não têm nenhuma base de sustentação, nem mesmo bíblica. Tais discursos já configuram crime hoje (injúria e difamação) e ilícito civil (dano moral).
O PLC 122/06 apenas trará penas compatíveis com a gravidade destes crimes de ódio, evitando que sejam enquadrados no campo dos juizados especiais criminais – enquadramento este que retira toda a capacidade de coerção da lei. Como bem disse Maria Berenice Dias, antes da Lei Maria da Penha, era “barato” bater na mulher, visto que bastava ao agressor pagar uma cesta básica para se livrar da punição – pois bem, nesse sentido, hoje é barato ofender e discriminar LGBTs, pelo enquadramento dos atos de constrangimento ilegal, injúria e difamação no âmbito dos juizados especiais criminais, daí a necessidade de aprovação do PLC 122/06.
Assim, deverá o Senado Federal esclarecer qual é a sua posição sobre o tema – se pretende arquivar o referido projeto de lei e implicitamente se declarar conivente com estes nefastos atos arbitrários/ilícitos/inconstitucionais de discriminação, constrangimento, intimidação, vexame, ofensa, agressão e assassinatos homofóbicos cotidianamente cometidos contra cidadãos LGBTs ou se, mediante a correta interpretação da norma regimental respectiva, entenderá que ainda há quatro anos de tramitação possível no Senado para que o PLC 122/06 possa ser analisado e levado a votação.
Outrossim, caso o Senado entenda pela exegese simplória de arquivamento do PLC 122/06, deverão os Senadores e Senadoras que compõem esta Nobre Casa Legislativa se posicionar sobre o tema, em defesa da cidadania, assinando o requerimento contrário ao arquivamento do PLC 122/06.
Sem mais para o momento, permaneço no aguardo de um posicionamento desta Nobre Casa Legislativa e dos Excelentíssimos Senadores e Excelentíssimas Senadoras que dela fazem parte, ficando ademais à disposição para o que se fizer necessário.
Atenciosamente,
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP (2008)
Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru (2010)
Advogado – OAB/SP 242.668
Autor do Livro “Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos”